domingo, 5 de abril de 2009

Ciberespaço como virtualização em rede. A Internet como objetivação espectral do capital

Por:

Prof. Dr. Giovanni Alves
UNESP- Campus de Marília

giovanni.alves@uol.com.br
http://giovannialves.cjb.net



O objetivo deste ensaio que apresento como comunicaçào é tecer considerações preliminares sobre a natureza do ciberespaço numa perspectiva materialista, procurando apreende-lo sua significação ontológica na esfera do ser social. Esta comunicação é apenas o fragmento de um ensaio de maior envergadiura que deverá ser publicado no livro que estamos organizando e que será intitulado “Dialética do Ciberespaço”, a ser lançado brevemente. Evitei apresentar uma bibliografia ampla, tendo em vista o caráter ensaístico da comunicação, permeada de hipóteses seminais sobre a natureza do ciberespaço. Antes de dialogar com um rol de autores decidi, portanto, tão-somente discorrer à solta sobre o tema, elaborando, no bom sentido, uma especulação crítica.



O surgimento do ciberespaço colocou o problema de apreendermos as formas do virtual. Se a dimensão do virtual e da virtualização é intrínseca à atividade humano-genérica, da práxis sócio-antropológica, foi tão-somente no século XX, sob as novas tecnologias informáticas e telemáticas, que ela assumiu um estatuto ontológico mais desenvolvido. Ela tornou-se uma abstração-concreta capaz de representar um novo espaço de sociabilidade humana. Na verdade, o surgimento do ciberespaço propiciou um salto qualitativo na concepção de “rede”, que deixou de ser meramente uma idéia formal-abstrata de cooperação social, para tornar-se a representação de um novo arcabouço midiático técnico-material de comunicação (e de fluxo de informações), reticular e complexo.



A apreensão conceitual do virtual e da virtualização como uma importante dimensão sócio-antropológica ocorreu na última metade do século XX, com o desenvolvimento do capitalismo tardio e de sua base técnica: as redes digitais e o ciberespaço. O seu lastro sócio-histórico é o desenvolvimento do processo civilizatório humano-genérico ampliado (como pressuposto negado pelo capital como capitalismo). É a partir da forma virtual mais desenvolvida – a virtualização em rede - que ocorreu a apreensão conceitual do virtual e da virtualização (é de Marx a seguinte sugestão onto-metodológica: “a anatomia do homem explica a anatomia do macaco”, isto é, o mais desenvolvido tende a explicar o menos desenvolvido) (Marx, 1988).



Apenas com o surgimento da rede digital e do ciberespaço na última metade do século XX, é que seria explicitado a centralidade ontológica da virtualização e do virtual como um traço ineliminável da práxis humano-social. Mas, apesar da determinação histórico-concreta, nem toda tradição filosófica ocidental “esqueceu” a importância da virtualização e do virtual. Apenas não conseguiu discriminá-la (e destacá-la) no sentido conceitual. Por isso é possível encontrar uma série de reflexões filosóficas (e literárias), dos Antigos gregos às filosofias dialético-idealistas do século XVIII e XIX (tais como Hegel e mesmo Kant), que sugerem o virtual e a virtualização como determinações inelimináveis do devir humano.



Iremos sugerir que o ciberespaço diz respeito a uma forma de virtual e de virtualização – a virtualização em rede. Ou melhor ainda, podemos dizer que o ciberespaço não representa apenas a virtualização informacional, que surge com as máquinas computadorizadas, mas sim a virtualização informacional em rede (os computadores passam a se “relacionar” uns com os outros). Através de um arcabouço técnico – a rede – os homens, mediados pelos computadores, passam a criar nexos simbólico-linguisticos capazes de instituir um novo espaço de sociabilidade virtual, não-presencial, mas deveras efetivo. O surgimento da virtualização informacional em rede ampliou a potentia de virtualização humano-genérica, integrando em si e para si, com arranjos qualitativamente novos, outras formas de virtual e de virtualização.



O que se constituiu como ciberespaço é um momento qualitativamente novo, de exteriorização antecipadora, e, portanto, “espectral”, do poder socio-genérico do homem (o que exige distinguir, pelo menos dois momentos – o de surgimento do computador ou do personal computador e o de surgimento da Internet, a rede das redes). Entretanto, por ocorrer sob o sistema sócio-metabólico do capital, as redes digitais e o ciberespaço tendem a explicitar a virtualização em rede não como um novo espaço de invenção e de heterogênese humana, mas sim, como um novo locus de fetichismo, um momento de “alienação” como ciberhominização.





1. O Que é o Virtual.



A discussão sobre o que é o virtual e a virtualização se desenvolve principalmente na década de 1980. Ela acompanha o próprio surgimento e avanço do ciberespaço como virtualização em rede. Um dos livros clássicos, que tratam do conceito de virtual, é O Que é o Virtual (1995), de Pierre Lévy. Nesse pequeno livro, o autor tratou o virtual e a virtualização como vetores do processo de hominização, apreendendo-os, menos como um modo de ser particular e mais como um processo de transformação (e passagem) de um modo de ser num outro. Ao atribuir o virtual e a virtualização como vetores do processo de hominização, ou seja, como nexo estrutural da passagem do macaco em homem, Lévy tende a desprezar, nesse caso, a centralidade ontológica da categoria do trabalho. Na verdade, como observa Georg Lukács, o homem é um animal que se faz homem através da atividade do trabalho. A autocriação do homo sapiens ocorre através da atividade do trabalho, isto é, da produção dos seus meios de vida material. Podemos considerar que o virtual e a virtualização é um modo de ser particular da atividade humano-sensível, ou seja, são determinações inelimináveis da atividade do trabalho e sua dialética estrutural entre teleologia e causalidade. Elas dizem respeito a própria teleologia da atividade humana. O desenvolvimento ampliado da produção da vida material, através do recuo das barreiras naturais, do desenvolvimento das forças produtivas, significa o desenvolvimento das formas de teleologia humano-genéricas, seja em sua forma primária, seja em suas formas secundária. Na medida em que a atividade do trabalho se desenvolveu e tornou-se complexa, a dimensão do virtual e da virtualização acompanhou tal desenvolvimento humano-genérico. Não é possível compreender o desenvolvimento do virtual e da virtualização sem vincula-la com o próprio desenvolvimento da ativiodade complexa do trabalho como protoforma de toda práxis social. Ao perder o nexo ontológico com a categoria do trabalho, Lévy tende a apreender o processo de hominização e do próprio devir humano num sentido genérico-abstrato. O processo do devir humano, a heterogênese humana ou o “devir outro” não aparecem como processo civilizatório humano-genérico, inserido em determinações histórico-concretas, sob a determinação do capital e seu desenvolvimento contraditório. Nessa perspectiva, podemos afiormar que o processo de virtualização e do virtual é não apenas um modo de ser particular da atividade do trabalho, mas a passagem (ou a transformação) persistente, através das possibilidades concretas abertas pela técnica, de um modo de ser homem num outro modo mais desenvolvido de homo sapiens, emancipado ou não das objetivações estranhadas constituídas por si em seu próprio devir humano.



O que se percebe em suas divagações sobre o virtual, é que Lévy nos apresenta uma concepção demasiadamente ampla, tão geral e abstrata que dificulta a apreensão concreta das diferenças verdadeiras entre as duas formas de virtual e (de virtualização):



Primeiro, a virtualização (e o virtual) sócio-antropológico, que diz respeito a um processo sócio-antropológico de longa duração, de devir humano, inscrito na própria atividade do trabalho como protoforma da práxis social em seu momento de teleologia secundária. É um momento ineliminável do processo de hominzação/humanização.



Segundo, a virtualização (e o virtual) histórico-sociológico, que diz respeito a um novo modo de ser da teleologia humana, desenvolvida a partir das redes de informações digitais e do ciberespaço e que representa um salto qualitativamente novo, enquanto possibilidade concreta, para o processo de devir humano-genérico. Este novo modo de ser da teleologia humano-genérica, baseado no desenvolvimento da virtualização informacional em rede, é totalmente determinado, em si e para si, pelo capital como capitalismo, o que implica a posição de contradições candentes entre o seu sentido sócio-antropológico, apreendido, por edxemplo por Lévy, e seu dado histórico-sociológico.



É a incapacidade analítica de apreender tal contradição sócio-histórica objetiva, entre as duas formas de virtual (e de virtualização), que tende a limitar a leitura de Pierre Lévy do fenomêno do ciberespaço.





2.0 O significado (e a crítica) do conceito de virtual



Apesar de seus limites metodológicos, Pierre Lévy nos apresenta alguma sugestões sobre a natureza do virtual e da virtualização como novo modo de ser da teleologia humana. Ele procura distinguir, por exemplo, atual e virtual, possível e real. Ele nos apresenta, sob a influência de Derrida, uma nova leitura das categorias de realidade, possibilidade, atualidade e virtualidade. Essa nova sintaxe teria uma função heurística: destacar um aspecto do processo de hominização não salientado, segundo ele, pela tradição filosófica ocidental, sempre preocupada em analisar a passagem do possível ao real ou do atual ao virtual (supomos que sua crítica se dirige a tradição filosófica cartesiano-empirista e não propriamente a tradição filosófica dialética). Lévy sugere o inverso. Por isso, como iremos verificar, ele evitar reduzir o o atual, concebido como objetivação não-reificada ou coisificada, ao real visto por ele como “coisa” reificada. Para salientar a subjetividade criadora do virtual, ele a distingue do possível, compreendido como um real fantasmático e “latente”. Enquanto o real é uma objetivação/exteriorização de um possível, o atual é uma objetivação criadora do virtual (nesse caso, a partir de um sujeito livre e criador, o homem que trabalha, diríamos nós). Na verdade, as novas significações de Lévy constroem a sintaxe da autocriação humana a partir de uma subjetividade perpétua, que rejeitando a sedimentação no atual, tende a se auto-constituir no campo do virtual. A virtualização é, portanto, o retorno à autocriação do sujeito propiciado pela “abertura” do atual. O atual é o “virtual” tornado objeto, um objeto que pressupõe o sujeito (o homem). A passagem do virtual para o atual, ou seja, o processo de atualização, é o próprio processo de criação do novo, de um novo que adquire o estatuto ontológico de objeto criado (pelo homem livre). É a “solução” de um problema.



Podemos dizer que, o processo da atualização, que diz respeito a objetivação/exteriorização, de criação do novo, possui como seu inverso reflexivo, o processo de virtualização. O virtual, deste modo, é o campo de uma não-presença efetiva, de um não-ser no sentido de presença (dasein, em alemão), mas que possui uma efetividade objetiva, no sentido de pôr em movimento séries causais (eis, portanto, as duas determinações essenciais do virtual). O que coloca, portanto, o virtual e a virtualização como um novo modo de ser da teleologia humano-genérica. Apesar de sua natureza não-presencial, possui uma efetividade ontológica, decorrente de seus nexos com a teleologia do trabalho como protoforma da práxis social.



Na verdade, Lévy contrapõe o virtual ao atual e não propriamente ao real (deste modo, o virtual seria uma forma do real e não propriamente o próprio “real” – poderimaos dizer: uma “abertura” do real enquanto efetividade objetiva). É, entretanto, uma contraposição reflexiva, pois ambos são momentos essenciais da criação humana, inclusive porque a virtualização se dirige a uma atualização. Poderíamos até dizer que, uma diz respeito ao objeto, o que o outro diz respeito ao sujeito. Deste modo, um não poderia existir sem o outro.



Mas, quais seriam, segundo Pierre Lévy, as relações entre o virtual e o real?

O virtual possui, como inverso reflexivo, o atual. Agora, o real é seu antípoda absoluto, apesar de que o virtual possa derivar para o real e não apenas para o atual (o que seria aquilo que Lévy indica como sendo a “alienação”). O inverso reflexivo do real é o possível, que é o real fantasmático e latente. Poderia ser a dimensão da natureza que se contrapõe à dimensão do homem, sujeito livre e racional. O processo de transformação do possível no real é denominado de realização, que não significa para Lévy a “alienação” propriamente dita. Na verdade, a “alienação” é uma ocorrência que pode atingir uma outra passagem (a do virtual para o real). Só o homem, e não a natureza, é capaz de alienar-se de si mesmo, de se perder (Lévy não explicita as determinações causais de tal perda ou alienação de si mesmo). Cabe salientar que inexiste em Lévy uma teoria da alienação capaz de tornar claro as suas formas sócio-históricas. Supõem-se que, para ele, “alienação” seja identificada com fetichismo e, em alguns momentos, com exteriorização/objetivação (o que o aproxima do idealismo hegeliano). Além disso, uma lacuna decisiva – a ausência de uma teoria do capital, capaz de tornar claro as causalidades sócio-históricas da “alienação” propriamnete dita.



O que Lévy quer ressaltar é o processo de virtualização, que é o tornar-se virtual do objeto atual (ou da coisa real? - ele não deixa claro). Por isso, a virtualização, que é a instauração de um campo virtual, e, portanto, de (re)criação do humano enquanto subjetividade perpétua, promove o movimento inverso, deslocando o ser para a questão, a “solução” para um campo problemático, no sentido de uma (1) desterritorialização e uma (2) mutação de identidades (o que ele denomina de efeito Moebius).



Seguindo a lógica conceitual de Lévy, impregnada da tradição filosófica alemã clássica, diríamos: o homem é um animal capaz de virtualização. Poderíamos dizer ainda que o virtual e a virtualização em Hegel poderia ser o Espírito (Geist) (o “Espírito” em Hegel é a Liberdade). Talvez, o virtual em Lévy seja tão-somente a metáfora da Liberdade. Ou ainda, Lévy queira destacar aquilo que distingue o ser do ente (na acepção de Martin Heidegger).



A atualidade (ou a realidade) concebida como uma “solução” efetiva é remontada em direção a uma problemática. Diz Lévy: “o virtual só eclode com a entrada da subjetividade humana”. Tanto quanto o atual (ou o real), o virtual possui uma efetividade não-presencial, mas prenhe de novas promessas de objetivação. Estamos diante de um processo de criação humano-social onde se salienta, não o pólo da constituição do objeto (o que seria a atualização), nem muito menos da coisa (o que seria a realização), mas sim o pólo da constituição da subjetividade perpétua, plena e irremediável, ou ainda uma “inteligência coletiva” (expressão utilizada por Lévy).



Ao tratar do processo de virtualização, no nível filosófico-antropológico, Lévy tende a assimilar a atividade humano-genérica à problemática da praxis social. O momento de antropogenêse é o processo de atualização/virtualização (que é, na verdade, o eufemismo para o processo de trabalho), sendo que a virtualização e o virtual é a expressão do pólo subjetivo (da ação do sujeito coletivo) na atividade de objetivação social. A virtualização é a objetivação de uma subjetividade que (re)põe seu telos e afirma sua liberdade na medida em que promove a mutação de sua identidade dada.



É nesse momento que a reflexão filosófico-antropológica de Pierre Lévy demonstra tratar do desenvolvimento tardio, e portanto, mais ampliado e complexo, da posição teleológica humano-genérica, capaz de se auto-constituir, em si e para si, como momento autônomo da própria atividade do trabalho como práxis social. É um novo modo de ser da teleologia humano-genérica que tende a determinar cada vez mais a própria produção da vida material.



Em síntese, podemos dizer que, para Pierre Lévy, o campo do virtual se caracteriza pela não-presença efetiva. É virtual o que não está presente, mas tende a exercer uma efetividade criadora, prenhe de promessas de um novo objeto, uma efetividade “aberta”, capaz de (re)criar novas identidades. Apesar da sua não-presença, um objeto virtual é efetivo, uma efetividade que provém da própria relação (inter)subjetiva, do fato de ser a própria incrustação da subjetividade humana.



Ora, o possível é para Lévy também uma não-presença efetiva. Nesse caso, o que o diferenciaria do virtual? Se o atual e o real dizem respeito a realidades manifestas, o virtual e o possível dizem respeito a realidades não-manifestas, são não-presenças efetivas. Só que o virtual é para Lévy atributo de um sujeito livre (que seria o próprio homem), enquanto o possível seria atributo da natureza. O possível seria uma efetividade não-presente que é incapaz de criação do novo, mas apenas de “realizar” uma “natureza” prévia, reproduzir as identidades e delimitações postas. O processo de “realização”, ao contrário do processo de virtualização, é meramente um processo de reiteração do dado, não indo além do próprio dado (Hegel diria da certeza sensível ou do entendimento). O processo de “realização”, na acepção de Lévy, é a própria não-liberdade do homem, possuindo, portanto, um caráter meramente instrumental (expressaria a razão instrumental, diriam Horkheimer e Adorno). O campo do possível, diria Lévy, não é o campo da construção humano-genérica, mas apenas da reiteração da coisa, do objeto fetichizado.



Por outro lado, o campo do virtual é o elán de uma inteligencia coletiva, que seria o próprio espaço da criação humano-social. Deste modo, o virtual é o campo da interação humano-genérica no sentido da prévia-ideação; de um tipo particular de posição teleológica elaborada antes da sua própria atualização. Tal como o processo de atualização, o processo de virtualização é um processo de constituição de um objeto, um objeto virtual, um objeto muito particular, que, a rigor, não seria um objeto propriamente dito, pois é intangível e desterritorializado, de um efetividade não-presente apreendida pelo sujeito como criação de suas próprias mãos. Um objeto com novas significações, diríamos, um objeto-subjetivo, onde a sua materialidade estaria apenas pressuposta, e não mais posta, como na atualização, pois o que estaria posto, no caso do virtual, seria o meta-psiquismo humano, a subjetividade humana, a “inteligência coletiva”.



Portanto, para Lévy, o virtual se caracterizaria pela (1) desterritorialização e pelo desprendimento do hic et nunc, do aqui e do agora (o não-presente), e pelo (2) efeito Moebius, isto é, a passagem do “interior” ao “exterior” e do “exterior” ao “interior”, ou seja, a dissolução das fronteiras, a fluidificação de distinções instituídas, a mutação das identidades constituídas (o que Lévy está tentando traduzir, em suas divagações filosóficas é dimensão transcendente da práxis sócio-histórica, com sua dialética concreta inscrita no conceito de aufhebung).



Ora, Lévy observa que tais características do virtual e da virtualização dizem respeito a uma “nova maneira de fazer a sociedade”. Ora, principalmente no que observamos no efeito Moebius, ele trata de processos sócio-cognitivos intrínsecos a rupturas revolucionárias da sociedade históricas. Ë a natureza de um momento nascente da transformação social e que pertence, em si, à reprodução social histórico-concreta. Por outro lado, é verdade que o efeito Moebius, mutatis mutante, caracteriza o telos humano no ciberespaço, isto é, na virtualização em rede, que permite, através de técnicas flexíveis, cada vez mais apuradas, sociabilidades desterritorializadas e fluídas. Deste modo, o efeito Moebius, diz respeito, de certo modo, apenas ao ciberespaço e ao espaço social da virtualização em rede, e é ele – o efeito Moebius - que dá ao ciberespaço sua capacidade de espectro antecipatório do processo humano-genérico. É possível dizer, como hipótese, que as mutações de identidades que ocorrem no ciberespaço são tão-somente reflexos espectrais de um processo histórico-objetivo dominado pelo capital (que nega, no sentido dialético, uma subjetividade criadora, plena e irremediável), sendo, portanto, discutível reduzir uma projeção espectral, à sua condição histórico-real (mesmo que ela tenha um significado antecipatório).



Algumas distinções que apresentamos como hipóteses são importantes. São elas:



1. O virtual e a virtualização do ciberespaço não é meramente a virtualização das máquinas computadorizadas em si (ou virtualização informacional). O conceito de ciberespaço implica a idéia de “rede” como signo civilizitário, como representação do em-si da genericidade humana, que possui como objetivação estranhada as novas tecnologias de comunicação e de informação.

2. O desenvolvimento da virtualização informacional em rede, ou ciberespaço, a partir das novas tecnologias de comunicação e de informação, nos colocou diante do conceito de virtual e de virtualização como conceito sócio-antropológico (como nos apresentou Lévy). Só que a virtualização informacional em rede, aquela que é intrínseca ao ciberespaço, é qualitativamente diferente da virtualização sócio-antropológica, pressuposto histórico-ontológico da atividade humano-genérica do trabalho e dos processos de criação humano-sociais e culturais. Primeiro, o ciberespaço é uma objetivação sócio-técnica complexa e do processo de trabalho e de autocriação humano-genérica. Segundo, por ser um objeto técnico complexo, tende a incorporar em si, propriedades humano-genéricas em sua forma de rede (que traduz a propriedade humano-genérica de cooperação social). Terceiro, o ciberespaço, por se desenvolver sob o sistema sócio-metabílico do capital, tende a não ser apreendido como objetivação humano-generica, como objeto técnico estranhado afetado de novos fetichismos.



É claro que a linguagem, a técnica e o contrato, considerados por Lévy como expressão da virtualização, pressupõem a idéia de “rede”. Na verdade, é interessante que ele apreenda, a partir de uma lógica “social” fetichizada no ciberespaço, algo que é intrínseco à atividade humano-genérica. É apenas sob o capitalismo tardio, que a “rede” como signo civilizatório, fetichizada através da técnica, tornou-se manifesta (uma manifestação negada) como ciberespaço. Na verdade, através dele, a “rede” adquiriu uma forma material, sócio-tecnológica, capaz de dar conteúdo concreto às determinações essenciais do virtual e da virtualização contidas nos atos humanos originários (produto da subjetividade humana). Com a “rede”, a liberdade, que Hegel chegou a identificar com o Espírito, adquiriu seu objeto (ou sua extensão) espectral efetiva, embora não-presente.



3.0 Uma IV Revolução Tecnológica



Foi a partir da mundialização do capital que ocorreu o desenvolvimento do ciberespaço, ou seja, a constituição das redes telemáticas e informáticas digitais. Deste modo, como salientamos, o processo de virtualização em rede ou ciberespaço é deveras recente, ao invés da virtualização e do virtual propriamente dito, que é intrínseco à própria atividade humano-genérica do trabalho como práxis sócio-histórica. É a distinção que salientamos alhures entre virtualização no sentido sócio-antropológica e a virtualização no sentido histórico-sociológica. O que podemos colocar, como hipótese, é que o surgimento e o desenvolvimento do ciberespaço tendeu a intensificar (e tornar mais complexa) a capacidade de virtualização (e de percepção do virtual), no sentido sócio-antropológico. Na verdade, o ciberespaço propriamnete dito poderia ser considerado uma importante dimensão do desenvolvimento complexo das bases materiais do sistema sócio-metabólico do capital (o que Harvey denominou de “regime de acumulação flexível”). Na verdade, é uma nova mutação sócio-antropológica do homem que tendeu a ser apropriado de forma contraditória, principalmente em seus desdobramentos cognitivo-sunjetivo, pelo capital como sistema sócio-metabólico. Através do desenvolvimento da nova base material ocorreram transformações sociais nos mais diversos campos da atividade sócio-humana. É o que Castells nos apresentou como sendo a “sociedade em rede”. Surgiram não apenas no campo da produção de mercadorias, as empresas em rede, mas ocorreram importantes mutações sócio-culturais (e politicas) que atingiram as mídias de virtualização em decorrência da aceleração dos meios de comunicação e de informação. Constituiu-se um novo espaço de sociabilidade efetivo, apesar de não-presencial (através da compressão espaço-tempo) com impactos decisivos na produção de valor (a acumulação flexível) e na esfera da indústria cultural e da sociabilidade (hipermídia e ciberespaço).



Uma das nossas hipóteses é que o surgimento do ciberespaço propriamente dito, através do desenvolvimento de novas formas tecnológicas informáticas e telemáticas em rede, deram origem a uma IV Revolução Tecnológica. Ela não atingiria apenas a produção social de mercadorias, através das novas tecnologias informáticas e telemáticas, ou contribuiria para o desenvolvimento de uma acumulação flexível centrado numa nova forma de organização empresarial (a “empresa em rede”), mas teria impactos decisivos principalmente na atividade sócio-cultural do homem e suas “máquinas de virtualização”.



Para nós, as “máquinas de virtualização” seriam as “máquinas” sociais capazes de projetar o homem para além do hic et nunc e promover uma descontinuidade (ou compressão) espaço-temporal e que seriam apropriadas pelo capital para sua auto-reprodução sistêmica. Por exemplo, a indústria cultural tenderia a se apropriar das “máquinas de virtualização” para auferir lucros. Ela tende a expressar uma disposição estrutural do “sujeito”capital, ou seja, ser capaz de uma apropriação sistemática das qualidades humano-sóciais, como a qualidade da virtualização intrínseca à espécie humana, para interverte-las em meio de valorização do valor.



Ora, o surgimento do ciberespaço contribuiu para a constituição de um novo espaço virtual de fluxos de mercadorias e de capitais, de objetivações imateriais e de produção de subjetividades mais desenvolvidas. Seria uma nova (e contraditória) dimensão humano-genérico desenvolvida pelo capital em seu processo incontrolável de devassamento do mundo. Desde que encontrou uma base técnica mais adequada para seu desenvolvimento expansivo e incontrolável (a forma mecânica, com a I Revolução Tecnológica, nos primórdios do século XIX) o capital ampliou sua capacidade de dominar e controlar o homem e a Natureza, com a II Revolução Tecnológica e a III Revolução Tecnológica desenvolvendo, em si e para si, as várias formas de máquinas. Elas representam, de forma cumulativa, o recuo contínuo das barreiras naturais e a construção tendencial de uma “Segunda Natureza” (da qual o ciberespaço enquanto fetiche tardio do poder social estranhado é sua expressão mais desenvolvida).



Ora, o que denominamos de IV Revolução Tecnológica ocorreria a partir de uma nova concepção de organização das máquinas informacionais, que incorporariam uma nova sinergia por meio da objetivação técnica (e tecnológica) da própria idéia de “redes” (uma propriedade humano-genérica expressa na idéia de cooperação social). Da virtualização meramente informacional, passaríamos à virtualização informacional em rede. É com a constituição da “rede” digital que tenderia a ocorrer um salto qualitativo no próprio caráter das máquina informacionais, oriundas da III Revolução Tecnológica. A “rede” seria a máquina total (ou o que Lévy denominou de “máquina-universo”) com suas articulações tecnotrônica reproduzindo o espaço social num espaço virtual-social, com a cooperação humano-social desdobrando-se numa dimensão virtual (o ciberespaço). Ocorreria o surgimento (e desenvolvimento) da integração flexível, tanto no campo da produção e circulação de mercadorias, como nas relações de consumo, se disseminando a conexão, a cabo ou wireless, dos novos aparatos microeletrônicos. Consideramos que a maior expressão da IV Revolução Tecnológica é a Internet, a “rede das redes”. No tocante a indústria culturas e seus aparatos de virtualização, uma tendências do ciberespaço é integra-los cada vez mais, desenvolvendo formas de hipermidias digitais (fotografia, telefone, rádio, cinema, televisão, computador,fax, etc).





4.0 A potentia de virtualização



O ciberespaço é um espaço sócio-virtual, baseado em técnicas informacionais em rede, que, como quaisquer outros espaços sociais, criados pelo trabalho social do homem, permite (e contribui para desenvolver) a interação sócio-humana. Entretanto, o homo sapiens em seu processo de hominização/humanização, sempre constituiu espaços virtuais propriamente ditos, capazes de projeta-lo para além do hic et nunc. Como salientamos acima, o homem é “um animal que se faz homem através do trabalho”, como observa Lukács. Ao dizemos atividade do trabalho, dizemos o desenvolvimento ampliado dos atos teleológicos, cada vez mais complexos, o que significa a constituição de mundos virtuais. Portanto, o virtual e a virtualização é algo ineliminável do ser genérico do homem. É intrínseca à própria evolução da técnica e da atividade de objetivação do trabalho sócio-humano. Das pinturas pré-históricas do homem de Neanderthal à indústria cultural do século XX vislumbramos o desenvolvimento ampliado da potentia de virtualização.



Da escrita à elaboração do texto, através do desenvolvimento de várias formas técnicas, é possível apreender os nexos de construção de um mundo virtual do homem,. Por exemplo, através do texto literário, podemos “atualizar” em nossa imaginação subjetiva, as virtualidades de um drama romântico, sentindo emoções reais, cuja intensidade é proporcional à construção lingüística (e simbólica) de um talento literário. É claro que uma obra literária é uma produção social, mas a forma textual em si, só permite um tipo de virtualização linear, com uma demarcação clara entre autor e público. Por outro lado, o hipertexto, que surge com a virtualização informacional, tende a ser uma forma de virtualização complexa, assumindo novas qualidades com a virtualização informacional em rede. Através da forma hipertextual em rede, é possível interagir (e cooperar) com outros e abolir a demarcação rígida entre autor e público. Na verdade, a forma textual não desaparece, até porque ela é uma conquista da individualidade em-si e para-si do homem moderno. Mas a forma hipertextual tende incorpora-la às condições sócio-históricas de um desenvolvimento ampliado do ser genérico do homem.





- A arte



A arte tout court e a literatura em particular é uma poderosa “máquina de virtualização”, representando a disposição ontológica do homo sapiens em criar novos mundos simbólico-virtuais (Ernst Cassirer dirá que o homem é um “animal simbólico”). Ela expressa nossa potentia de virtualização e representa, em si, mesmo em suas formas estranhadas, a idéia de comunidade humano-genérica (como pressuposto negado). No século XX, a indústria cultural se apropriou de uma potentia de virtualização cada vez mais complexa e desenvolvida pela civilização do capital. O desenvolvimento do capitalismo moderno produziu uma sociedade cada vez mais social e uma individualidade subjetiva mais disposta à potentia da virtualização. Os novos desenvolvimentos da base técnica de produção e reprodução da obra de arte, por exemplo, permitem, cada vez mais, uma aproximação entre impressão virtual (predominante, por exemplo, na literatura) e impressão real (a “coisa”, representadas através da fotografia e do cinema no século XX)). Com os novos meios técnicos de reprodução artística, o virtual e a virtualização passou a ter impressa em si, a positividade do “espírito moderno”, deixando cada vez menos de ser um campo de criação imaginária da individualidade em si e para si. Seria no desenvolvimento das novas técnicas de virtualização “mecânica” que o “espírito da positividade moderna” tenderia a se impor à potentia de virtualização (coube ao jovem Hegel caracterizar a positividade como uma das características da idade moderna). A partir da III Revolução Tecnológica, surgiram novas tecnologias digitais de som e imagem que impõe à potentia de virtualização, um realismo digital, que é tão-somente o desenvolvimento mais avançado do realismo mecânico da arte moderna. Por exemplo, Benjamin em seu ensaio “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” nos apresentou os significados sociais da reprodutibilidade mecânica da obra de arte, destacando, por exemplo, o cinema. (o cinema seria a “arte total”, a “arte-máquina”, do século XX, a síntese da positividade da potentia de virtualização). Na verdade, com o realismo mecânico é como se ocorresse uma reificação da virtualização (ou de perda da aura da obra de arte, na acepção de Benjamin). Mas o surgimento de um realismo digital, principalmente através da virtualização informacional, tende a instaurar novas formas de fetichismo da virtualização (a ciberhominização). Através dele, o cinema e a música atingem uma perfeição de reprodução técnica que permite à potentia de virtualização maior integração e flexibilidade.



Entretanto, para não cairmos presas do próprio fetichismo da forma técnica, é importante ressaltar que, a contradição candente posta pela forma social do capital diante da nova base material, tende a irromper “fissuras” lancinantes na própria forma de aparecimento do objeto técnico mais desenvolvido. É claro que o realismo mecânico (e digital) instauram novos (e ampliados) tipos de fetichismo da virtualização, mas abrem, em si e para si, a possibilidade de desenvolvimento de novos conteúdos (e formas) contraditórios com a forma social dominante.





- A religião e o dinheiro



Mas não é apenas arte que compõe a dimensão simbólico-subjetiva da práxis de virtualização humano-genérica. É importante destacar a religião, que em suas origens, se confundia com a arte. A religião sedimenta a potentia de virtualização em duas dimensões sócio-ontológicas do homem: a primeira é expressão simbólico-subjetiva de uma produção social estranhada intrínseca às sociedades de classe, da divisão do trabalho e do Estado político. E depois, representa, de forma invertida, a dimensão utópico-reflexiva de um ser genérico limitado, em última instância, pelas barreiras naturais. Por outro lado, a potentia de virtualização não diz respeito apenas à dimensão simbólico-subjetiva do “mundo vivido”, mas diz respeito à dimensão simbólico-objetiva, do “mundo sistêmico”. Se a arte e a religião dizem respeito a dimensão simbólico-subjetiva, o dinheiro diz respeito a dimensão simbólico-objetiva.



Aliás, religião e o dinheiro, em suas afinidades eletivas como potentia de virtualização, tornaram-se objetos de reflexão de Karl Marx em sua crítica da alienação. Em 1844, o jovem filósofo alemão percebeu a dimensão do virtual e da virtualização nas objetivações sociais estranhadas, a religião e o dinheiro, quando reconheceu que, mesmo acreditando em suas imaginações, um homem é capaz de realizar atos bastante reais (no sentido de ser efetivo). O que significa o reconhecimento da dimensão ontológica do virtual e da virtualização como um campo sócio-humano genérico ineliminável. Na verdade, ao tratar das religiões e do dinheiro como “proto-máquinas de virtualização”, lidamos com uma concepção de virtualização que significa a capacidade de homens e mulheres “projetarem” a sua subjetividade total em objetivações humano-genéricas criadas por si mesmos (como observou Feuerbach). A idéia de “projeção” contém a possibilidade sócio-histórica de alienação, de perda de si, inclusive do seu ser genérico, é o que seria uma projeção “invertida” em decorrência de condições sócio-históricas particulares. Por isso, tanto o dinheiro quanto a religião, nas condições das sociedades de classe representam objetivações estranhadas da potentia de virtualização humano-genérica.



O dinheiro constitui a sua potentia de virtualização em virtude de sua função sócio-histórica de ser meio de troca e meio de circulação de mercadorias, o que “projeta” em si todas as virtualidades estranhadas de uma sociedade aquisitiva, e ser meio de pagamento, incorporando, para si, ao instaurar uma descontinuidade no continuum espaóc-temporal (hic et nunc), o sentido essencial do virtual e da virtualização. É o dinheiro como meio de pagamento que torna possível algo que é indispensável para o capitalismo: a presença não-efetiva de uma mercadoria. Nos Manuscritos de 1844, o jovem Marx conseguiu apreender com maestria a potentia virtual do dinheiro (com o surgimento do ciberespaço e sua virtualização em rede, o dinheiro assume formas complexas, cada vez abstrata, expressando, de uma forma exacerbada, sua dimensão de virtualização) (Alves, 1999).



Ao tratarmos das “proto-máquinas de virtualização”, como a religião e o dinheiro, lidamos apenas com formas sócio-históricas de relações sociais e de sistemas sócio-históricos cada vez mais complexos e diferenciados (o dinheiro virtual de hoje, representa o maior exemplo da potentia de virtualização que lhe é intrínseco). Na verdade, é o processo de cooperação humano-genérica, através do trabalho social, que contribui para o surgimento e desenvolvimento da potentia de virtualização intrínseca a homens e mulheres e às suas objetivações estranhadas, como o dinheiro (ela assume, portanto, diversas formas culturais com conteúdos sócio-históricas particulares). Portanto, o que essas formas de objetivações culturais e simbólicas (e monetárias) representam em si, são as próprias relações sociais dos homens entre si e dos homens consigo mesmo no processo social de produção da vida material.





5.0 A Rede Como Cooperação Complexa



O desenvolvimento das forças produtivas sociais sob o capitalismo tardio, através do surgimento das novas tecnologias telemáticas e de informação em rede, criaram, principalmente a partir da década de 1970, novas “máquinas de virtualização”. Constituiu-se um novo espaço de sociabilidade virtual: o ciberespaço. O que procuramos salientar é que o ciberespaço pressupõe, como substrato ontológico, a idéia de rede, isto é, um campo de integração difusa e flexível dos fluxos de informações e de comunicação entre máquinas computadorizadas, um complexo mediador entre os homens baseado totalmente em dispositivos técnicos, um novo espaço de interação sócio-humana criado pelas novas máquinas e seus protocolos de comunicação, que tende a ser a extensão virtual do espaço social propriamente dito.



Na verdade, a rede não é propriamente uma extensão do homem como individuo social, mas sim a extensão do homem como ser humano-genérico. É uma constatação paradoxal tendo em vista que ela ocorre sob a propalada posição do individuo social. A rede é uma projeção espectral de suas qualidades ontológicas que não pertencem propriamente a um individuo social, mas apenas ao ser social em-si. Um computador pessoal (PC) pode ser visto como uma extensão técnica de um individuo social. É, como se diz, um “cérebro eletrônico”. Entretanto, a rede digital, constituída a partir da conexão entre computadores, é um fato tecnológico superior, irredutível à concepção da técnica como extensibilidade de órgãos vitais do homem como individuo social. Se a técnica pode ser concebida como “corpo inorgânico do homem” (Marx), a rede tenderia a traduzir a idéia de “corpo inorgânico” do ser social, do ser humano-genérico e não apenas de alguns de seus órgãos vitais, como os vários aparatos tecnológicos procuram expressar (por exemplo, a máquina fotográfica como um olho técnico; o automóvel como pernas mecânicas; o computador pessoal como o cérebro eletrônico, etc). Ora, a rede não expressaria um órgão vital, mas uma qualidade imaterial – e essencial – do ser humano-genérico: a cooperação social. Expressaria um desenvolvimento sócio-técnico, que possui, no seu interior, uma tendência em aprofundar a capacidade de autocriação humano-genérica, de heterogênese do homo sapiens.



A idéia de rede possui como substrato ontológico a categoria de trabalho, mas o trabalho concebido como interação sócio-humana complexa, que constitui, em si e para si, o homem como ser genérico. Temos salientado que,a perspectiva histórico-materialista, o homem é um animal que se fez homem através da atividade do trabalho. Mas cabe salientar que a concepção de trabalho que diz respeito ao processo civilizatório humano-genérico, é o trabalho em rede, ou seja, trabalho social, cooperação complexa, dialógica e não tão-somente monológica, como poderia supor um marxismo vulgar. Um complexo de trabalho que pressupõe, em si, a interação sócio-humana, uma “comunidade social”, real e virtual, e as três virtualizações que fizeram o humano: a linguagem, o contrato e a técnica. Por isso, a potentia de virtualização e o virtual, em suas múltiplas dimensões, se desenvolveram a partir do complexo de trabalho (Lukács), um trabalho social cada vez mais socializado pelo desenvolvimento técnico. Por isso, com a IV Revolução Tecnológica, a idéia (e realização) da rede digital e seus fluxos de informações, significaram uma nova etapa de desenvolvimento da sociabilidade moderna. (é possível dizer que a invenção do TCP/IP em 1967, o protocolo que permite a comunicação entre as “novas máquinas informacionais” tornou-se uma das principais, senão a principal, revolução do século XXI, mais do que a do próprio PC, o Personal Computer).



A virtualidade informacional em rede explicita um dos princípios constitutivos da potentia de virtualização humano-genérica, isto é, seu caráter de objetivação cooperada e social. A cooperação social como pressuposto ontológico da atividade do trabalho (e do virtual e da virtualização). Nos Grundrisse, Marx observou que “a primeira força produtiva foi a comunidade”, salientando, deste modo, a centralidade ontológica da categoria cooperação. No Livro I de O Capital, ele intitulou o capítulo 13 de “Cooperação” (um capítulo importante tendo em vista que abre a seção IV onde ele discute as formas de produção da mais-valia relativa, que representam o próprio processo histórico-ontológico de consituição da sociabilidade capitalista). Deste modo, a cooperação social não é uma determinação subjetivo-moral, sim, uma determinação histórico-objetiva. Por isso ela não pode ser apreendida meramente como solidariedade social (Durkheim).



A cooperação social pressupõe a idéia de “rede”. A rede passou a representar hoje, uma forma de cooperação complexa. A constituição de uma “inteligência coletiva”, através das redes digitais, é uma dimensão particular, qualitativamente nova, do processo de virtualização, que é intrínseco a todas as formas sócio-históricas de cooperação social. O que antes estava apenas pressuposto e existia numa dimensão formal-subjetiva (a idéia de “rede”), assumiu, por conta do desenvolvimento das forças produtivas sociais, uma dimensão objetivo-material. Surge a “rede” como cooperação complexa como a verdadeira metáfora do ser-precisamente-assim da espécie humana. Ela mesma tende a expressar a própria idéia de cooperação social.



A idéia de “rede” como metáfora da cooperação social assumiu uma significação concreta com o desenvolvimento do capitalismo industrial, ou seja, dos meios de transporte e de comunicação a partir da era da máquina. Entretanto, ela ainda não possuía uma objetivação material para si, tendo em vista que não implicava em si, a produção da subjetividade. Era ainda apenas uma rede-de-máquinas. Foi com o surgimento da Internet e das redes telemáticas e informáticas propriamente ditas, que a idéia de “rede” assumiu um arcabouço concreto. Ela passou a representar uma rede de homens-mediados-pelas-máquinas-informáticas.



É interessante observar que a maior parte da literatura de ficção científica do século XIX e da primeira metade do século XX, por exemplo, não conseguiu prever a era das redes digitais, embora tenha previsto o “cérebro eletrônico”, isto é, o computador pessoal. Entretanto, alguns filósofos (e teólogos) do século XX, como Teihard du Chardin, conseguiram intuír o surgimento da “rede”, passando a ver nela a objetivação do ser-precisamente-assim do humano (e do divino). O desenvolvimento da filosofia da linguagem no século XX pressupôs a “rede” como a forma material de um campo linguístico-comunicativo (desprezando, por outro lado, o complexo de trabalho, a verdadeira base ontológica da atividade e do pensamento do homem).



A Internet, a rede das redes, com seus hipertextos, e-mails e chats, e com seus fluxos digitais de informação, tornou-se uma poderosa “máquina de virtualização” de novo tipo, que tende a instaurar uma forma sócio-histórica particular de virtual e de virtualização (o ciberespaço). A partir dela, e com ela, se dissemina um complexo de redes que tendem a se interligar (surgimento da conexão wireless à Internet, e entre os múltiplos aparatos digitais, tende a tornar mais densa e complexa o sistema “caótico” de redes). Portanto, constitui-se, com maior densidade de fluxos, a virtualização em rede, o ciberespaço.



Finalmente, podemos salientar os significados dos conceitos de virtualização em rede, ciberespaço e Internet (a rede das redes) do seguinte modo: o ciberespaço é uma extensão social da virtualização em rede (um objeto indutor de “inteligência coletiva”, diria Pierre Lévy). É intangível, mas delimitado e criado por aqueles que o constituem sob a forma de uma cooperação não-presencial, mas efetiva - uma efetividade aberta e subjetiva, mas com suportes objetivos, atuais e reais (o que significa que, mesmo a virtualização em rede, é tensionada a atualizar-se ou realizar-se em objetos ou coisas). A virtualização em rede é o atributo do ciberespaço, enquanto a Internet, a principal rede de troca humano-genérica (e de intercâmbio mercantil), é o suporte técnico-material, do ciberespaço (com suas determinações atuais ou reais).





6.0 Rede, Capital e “Alienação”



Uma das nossas hipóteses é que a “rede digital” é uma metáfora do ser genérico do homem. Através dela se tornou manifesta a necessidade da cooperação sócio-humana, principalmente sob o sistema sócio-metabólico do capital, que se desenvolve a partir da apropriação das forças histórico-naturais da sinergia da cooperação social. “O homem é um animal social”, diria Aristóteles (a idéia de conexão em rede é o eufemismo tecnológico da cooperação humano-genérica).



Sob a mundialização do capital, o ciberespaço tendeu a ser apropriado de múltiplas formas pela lógica da valorização. Talvez o exemplo mais imediato seja o desenvolvimento do comércio eletrônico (B2C). Mas o capital se apropria da Internet e do ciberespaço não apenas para o comércio eletrônico, mas para desenvolver uma nova sinergia da produção em rede e do trabalho imaterial, integrando circuitos produtivos e as redes de subcontratação (B2B).



O modo de produção capitalista possui uma capacidade sócio-histórica impressionante de produzir novas “máquinas de virtualização”, em virtude não apenas de sua particularidade essencial, ou seja, ser comandado pelo capital como “sujeito automático”, mas também de ser, por um lado, processo civilizatório humano-genérico desenvolvido (que é um dos conteúdos dimensionais da própria “globalização”) e, por outro lado, processo ampliado de desenvolvimento das forças produtivas sociais a serviço da valorização do valor.



Com a virtualização em rede duplicam-se e se multiplicam “novas dobras” sociais da cooperação sócio-humana: atual, real, virtual, que utilizando as técnicas das redes digitais, tendem a reproduzir/produzir o humano-genérico, inclusive e principalmente, em suas formas fetichizadas (como a ciberhominização – o que veremos mais adiante). A lógica civilizatória pressuposta (e negada) no desenvolvimento do sistema sócio-metabílico do capital não é (nos seus objetos de virtualização), em si, excludente ou exclusiva, nem muito menos substitutiva, apesar de que possam ocorrer substituições recorrentes; mas sim, includente, inclusiva e cumulativa, com saltos qualitativos no interior de um processo sócio-históricas que produz e reproduz (nos seus agentes/sujeitos humanos) a desigualdade, exploração e exclusão. Entretanto, a Internet ainda é um artefato tecnológico rudimentar, cujas possibilidades da virtualização em rede tendem a ser totalmente frustradas lógica do capital e cuja capacidade de se desenvolver, no sentido de uma ampla apropriação social, é desafiada pela exclusão digital, produto da lógica desigual e excludente do capital como capitalismo.



Enquanto objetivação humano-genérica nas condições de uma sociedade de classes, a virtualização em rede tende a possuir um conteúdo fetichista irremediável. O estranhamento e o fetichismo tendem a impregnar todo artefato tecnológico da sociedade do capital. É a forma social (do capital) que determina a forma material, apesar de que ela, a forma material, possa criar novas possibilidades concretas de desenvolvimentos contraditórios da forma social que tem sido posta como um processo de produção (e reprodução) do capital, que possui, por outro lado, como pressuposto ineliminável (embora negado) o processo civilizatório humano-genérico. É a dialética irremediável do processo de hominização/humanização que ocorre através do trabalho social e da técnica como “máquina de virtualização” (mais adiante iremos sugerir uma interpretação tanto do que seja o sistema sócio-metabólico do capital quanto da “alienação” em suas formas sócio-históricas).



O surgimento da virtualização em rede sugere a possibilidade concreta de uma nova mutação humano-genérica, talvez comparável à passagem histórica da fase da coleta e da caça para a fase da agricultura e da constituição das civilizações históricas. Mas cabe salientar, se não quisermos cair numa mera ilusão espectral, que esta é tão-somente uma mera possibilidade concreta do desenvolvimento civilizatório (que sob o metabolismo social, coloca, na mesma medida, o barbarismo como fato histórico). Com a virtualização em rede, multiplicaram-se e exacerbam-se, num crescimento acelerado, contínuo e descontínuo, formas virtuais, atuais e reais de intersubjetividades humanas. Por isso, pode-se dizer que a virtualização em rede permite que sejamos muitos, apesar de sermos um, nós mesmos, rompendo identidades e limites (o que Lévy denomina de efeito Moebius). Além disso, a partir de “possíveis” tecnológicos, tende a multiplicar as ocasiões de produção de sentido (o que é um dos traços essenciais do virtual e do processo de virtualização). Mas, como temos salientado, tais desenvolvimentos técnico-civilizatórios ocorrem no interior da sociabilidade do capital (o que coloca limites estruturais às possibilidades concretas de desenvolvimento humano-genérico).





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