domingo, 18 de maio de 2008

Auto-Realização de Jogadores de Tibia - MMORPG

Por: Carla Junger Heyde

Com a autorização da autora, tomo a liberdade de apresentar a discussão proposta em sua dissertação de mestrado intitulada “Auto-Realização de Jogadores de Tibia – MMORPG”, defendida em 2007 junto ao programa em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRS.

Em linhas gerais, usando o texto da própria autora sua tese tem por objetivo:

Analisar a natureza da sociedade na qual vivemos, que passa a ter uma dimensão virtual proporcionada por jogos massivos multijogadores de interpretação de personagens baseados na Web, ou Massively Multiplayer On-line Role Playing Games – MMORPGs -, recorremos à teoria de Axel Honneth. O autor identifica o surgimento de um individualismo da auto-realização em sociedades capitalistas modernas, em que os indivíduos demandam condições autônomas de busca por auto-realização para alcançar o que compreendem por “vida boa”. Esse trabalho analisa os motivos que levam os jogadores a optar por participar da “sociedade virtual” dos jogos, partindo da hipótese de que o ambiente social que estes proporcionam possibilita a construção da auto-realização dos jogadores de forma complementar ao ambiente social ao qual o indivíduo pertence de carne-e-osso. Os jogos MMORPGs estariam assim complementando as necessidades individuais de realização social e os ambientes sociais “virtuais“ sendo, portanto, concretos em suas contribuições para tais demandas individuais. O que explica a opção dos jogadores por vivenciar suas relações sociais dentro do jogo. Para investigar a veracidade dessa hipótese, realizou-se uma etnografia virtual no ambiente do jogo Tibia e utilizou-se a técnica de observação participante que nomeamos “Jogando”: assistindo, lendo, escrevendo e participando. Os dados foram coletados através de conversas informais com mais de quinhentos personagens por um período de dezessete meses, num total aproximado de quatro mil horas. Foram analisados conforme a particularidade de cada tipo de relação desenvolvida pelos jogadores: amorosas, jurídicas e de valoração social. Essa pesquisa contribui para a compreensão de diversos fenômenos sociais relacionados a esse tipo de jogo e para auxiliar os diferentes públicos - formadores de opinião, familiares de jogadores, jogadores em potencial, instituições de ensino - a avaliar o ato de jogar. Os dados confirmam nossa hipótese e possibilitam a elaboração de perguntas sobre fenômenos que se reproduzem no ambiente virtual e contradizem os anseios daqueles que acreditam que “um outro mundo é possível”.

INDIVIDUALISMO DA AUTO-REALIZAÇÃO

Axel Honneth (2004a) analisa o desenvolvimento das sociedades modernas através da combinação dos processos crescentes de racionalização e de individualismo, os quais culminam em um novo tipo de individualismo, o da auto-realização. A partir dos estudos sobre racionalização e individualização realizados por Max Weber, Émile Durkheim e Georg Simmel, principalmente por este último, o autor sistematiza duas dimensões para o conceito de individualização. A primeira dimensão está relacionada à individualização social, a qual se refere a uma pluralização dos estilos de vida e a um aumento do isolamento dos atores individuais. A segunda está relacionada ao aumento da liberdade individual, a qual se desdobra por um lado em um caráter igualitário a todos os seres humanos, o de autonomia, e por outro em um caráter qualitativo que, por sua vez, está relacionado à diferenciação das qualidades singulares de cada indivíduo que articula sua personalidade autêntica, o de autenticidade. Os desdobramentos históricos dos processos socioculturais e das transformações das atitudes dos indivíduos são utilizados pelo autor para justificar sua
interpretação sobre o processo de individualização em curso.

As mudanças socioculturais ocorridas nos anos 1960-70 colocaram os indivíduos no
centro de seu próprio planejamento de vida. Os seres humanos passaram a reivindicar maior
autonomia para buscar melhor qualidade de vida com a realização de suas personalidades.
Esse processo de realização de personalidade pode ocorrer através de uma autodescoberta experimental da identidade pessoal (HONNETH, 2004a, p.470). Surge assim um estágio consciente de individualismo. Com o aumento do potencial de descoberta autônoma das identidades individuais, as instituições-chaves da sociedade precisaram adaptar-se ao novo ideal de conduta e mostraram suas mudanças através das estatísticas sociais: maiores taxas de divórcios, diminuição nas taxas de natalidade, mudanças na estrutura familiar, aumento de energia mental gasta em atividades de lazer e mais consumo de bens luxuosos, dentre outras.
O autor identifica assim o surgimento de uma nova forma de individualismo com o aumento de demanda por auto-realização individual, entendida pelo mesmo como processo espontâneo, ou seja, sem bloqueios internos, inibições psíquicas ou angústias, de articulação e de realização de metas individuais de vida definidas de forma autônoma (HONNETH, 2003b).
Porém, a auto-realização só pode ser adquirida com o auxílio de um parceiro de interação. Os “indivíduos se constituem como pessoas unicamente porque, da perspectiva dos.20 outros que assentam ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos como seres a que cabem determinadas propriedades e capacidades” (HONNETH, 2003b, p.272). O sujeito adquire consciência de si mesmo ao perceber sua própria ação da perspectiva de seus parceiros de interação, e constrói sua identidade através da internalização das reações desses parceiros.

[...] temos boas razões para assumir que a formação da identidade individual geralmente ocorre através de estágios de internalização das reações de reconhecimento padronizadas socialmente: o indivíduo aprende a compreender a si mesmo, tanto quanto um membro total, quanto um membro particular da comunidade social, ao ser gradualmente assegurado das habilidades e necessidades específicas constituintes de sua personalidade através de padrões de aprovação de reações por parceiros generalizados de interação (HONNETH, 2004b, p.354, (tradução nossa)1 .

Para ser possível descrever as estruturas universais de uma vida bem-sucedida, é necessário pensar nas condições intersubjetivas representadas pelos diferentes padrões de reconhecimento (HONNETH, 2003b, p.273). Nos estudos das teorias de Hegel e Mead, Honneth (2003b) encontra como ponto de convergência a idéia de que para que os indivíduos das sociedades modernas alcancem auto-realização, é necessário que sejam reconhecidos socialmente como sujeitos autônomos e individualizados, simultaneamente. Hegel defende a idéia de que a formação prática da identidade humana pressupõe a experiência do reconhecimento intersubjetivo. Para Mead, os sujeitos só podem chegar a uma auto-relação prática quando aprendem a se conceber, da perspectiva normativa de seus parceiros de interação, como seus destinatários sociais. Honneth (2003b) identifica que as relações de reconhecimento e, portanto, os processos de individuação estão diretamente relacionados ao momento histórico em que ocorrem. O processo da vida social opera como uma coerção normativa que obriga os indivíduos a uma ampliação gradual dos limites do conteúdo do reconhecimento recíproco. Só dessa forma eles podem conferir uma expressão social às pretensões de sua subjetividade, que sempre se regeneram, sendo um processo dinâmico de ampliação simultânea das relações de reconhecimento mútuo. A partir dessas idéias, o autor traça a hipótese de que a transformação das sociedades ocorre pelas lutas moralmente

O autor passa então a desenvolver sua teoria social de teor normativo com o objetivo de esclarecer os processos de mudança social, reportando-se às pretensões normativas estruturalmente inscritas na relação de reconhecimento recíproco (p.155). Atualizando as questões levantadas por Hegel e Mead para a realidade das sociedades modernas liberais capitalistas, identifica três tipos de relações intersubjetivas vivenciadas pelos sujeitos dessas sociedades: as amorosas, relações primárias de ordem afetiva entre amigos, amantes e familiares; as jurídicas, relacionadas às questões de direitos; e as de valoração social, ligadas a fins sociais considerados importantes para todos da sociedade. Em cada uma dessas relações, há um padrão de reconhecimento específico que possibilita o desenvolvimento de uma dimensão da auto-realização do indivíduo.
[...]

Auto-Realização de Jogadores de MMORPGs

A partir da teoria de Axel Honneth (2003b, 2004a), buscamos compreender a sociedade atual que, com o surgimento de jogos MMORPGs, oferece a seus membros a possibilidade de participar diariamente, de um mundo virtual construído pelo jogo que habitam através de um corpo virtual. Honneth permite uma análise da dinâmica de uma sociedade a partir da motivação de seus atores, considerando seu componente emocional. Os atores sociais analisados nesta pesquisa são jogadores de jogos do tipo MMORPG que, ao se conectarem ao jogo, assumem um personagem através do qual se relacionam com outros jogadores conectados em diferentes partes do mundo. O componente emocional que motiva as ações do personagem é do jogador que o comanda. Essa observação passa a ser relevante quando buscamos analisar a construção da auto-realização desses jogadores. Ao participar do mundo do jogo, o jogador constrói sua identidade social virtual através de suas relações no ambiente do jogo. Segundo a teoria apresentada, essa construção envolve diferentes tipos de reconhecimento social que contribuem para a auto-realização desse indivíduo que se relaciona.
A pessoa que joga um MMORPG participa de dois espaços sociais, o de carne-e-osso e o virtual. Em cada um deles os recursos disponíveis para a construção de suas identidades sociais têm características específicas. Isso nos leva a questionar o papel das relações sociais.42 que ocorrem no jogo para a construção da auto-realização do indivíduo que joga. Como se dá a construção da auto-realização do jogador? O reconhecimento obtido através de suas relações no jogo pode gerar uma auto-realização que complementa o reconhecimento em suas relações sociais na sociedade fora do jogo? Ou ele passa a necessitar do reconhecimento dentro e fora do jogo para se auto-realizar? Para que essas perguntas possam ser respondidas, é necessário averiguar empiricamente se o ambiente social criado por jogos do tipo MMORPG possibilita a construção da auto-realização dos jogadores. Ou seja, se as relações intersubjetivas entre os jogadores dentro do jogo, através de seus personagens, também envolvem processos de reconhecimento ou de desrespeito durante a construção da identidade do personagem, que é a identidade do jogador dentro do jogo. Poderíamos entender que esses jogos possibilitam um espaço social virtual de construção de auto-realização para os indivíduos que jogam?

Os jogos MMORPGs vêm ganhando popularidade, conforme aponta Woodcock (2005), através do levantamento do número de assinantes nos jogos mais conhecidos² , e como indicam as estatísticas de jogadores on-line no site de cada um desses jogos. O fato de essas pessoas dedicarem preciosas horas de suas vidas ao desenvolvimento de personagens em um “mundo virtual”, relacionando-se no ambiente do jogo, leva-nos a questionar que sociedade é essa em que vivemos. O que faz com que seus membros dediquem seu tempo a um “mundo virtual”? O que esse “novo mundo” está oferecendo aos indivíduos que não está sendo oferecido no velho mundo que habitamos de carne-e-osso? Esses jogos estariam preenchendo o vazio interior causado pelas relações sociais de carne-e-osso? Esses ambientes sociais criados pelos jogos seriam espaços alternativos para o indivíduo buscar sua auto-realização e poder assim alcançar sua “vida boa”, ou seja, melhorar sua qualidade de vida? Qual o sentido do ingresso no mundo virtual dos jogos em termos de auto-realização dos indivíduos que jogam?
A partir dessas perguntas, passamos à observação da realidade empírica em busca das respectivas respostas. Como ponto de partida, a hipótese de pesquisa foi de que o ambiente social criado pelos jogos MMORPGs propicia relações sociais através das quais é possível a construção da auto-realização dos jogadores de forma complementar ao ambiente social que o jogador pertence fora da internet. Os jogos MMORPGs estariam assim complementando as necessidades individuais de realização social e as sociedades “virtuais“ sendo concretas em

1 “[...] we have good reasons for assuming that individual identity formation generally takes place through stages of internalization of socially standardized recognition reactions: The individual learns to grasp his or her self as both a full and a particular member of the social community by being gradually assured of the specific abilities and needs constituting his or her personality through the approving patterns of reaction by generalized interaction partners” (HONNETH, 2004b, p.354)..21 motivadas de grupos sociais, numa tentativa coletiva de estabelecer institucional e culturalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco (HONNETH, 2003b, p.155- 156).

2 Dentre os jogos MMORPGs famosos se encontram: Anarchy Online , Eve Online , Maple Story , Ragnarok Online , Second Life , Tibia , Ultima Online e World of Warcraft .

suas contribuições para as demandas dos indivíduos que se encontram sob a lógica do individualismo da auto-realização. O que explica a opção por vivenciar suas relações sociais dentro do jogo, jogando.


HONNETH, AXEL. Organized Self-Realization: Some Paradoxes of Individualization.
European Journal of Social Theory, London: Sage, 7(4), p. 463-478. 2004a.

______. Recognition and justice: Outline of a Plural Theory of Justice. Acta Sociologica.
London: Scandinavian Sociological Association and SAGE, Vol 47(4), December, p. 351-
364. 2004b.

______. A Response to Nancy Fraser. In: FRASER, Nancy; HONNETH, Axel.
Redistribution or Recognition: apolitical-philosophical exchange. London: Verso, 2003a. p. 110-197..133

______. Luta por reconhecimento: a gramática social dos conflitos sociais. São Paulo:
Editora 34, 2003b.