quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

A cidade e a perda do espaço público parte I

Por: Alex Antonio bresciani

A CIDADE E A PERDA DOS ESPAÇOS PÚBLICOS


A cada dia era mais difícil jogar futebol na rua. Enquanto durou a reforma do prédio, o jogo era interrompido a cada momento por caminhões carregados com tijolos, areia, madeira. Depois, quando se pensou que o movimento fosse diminuir, viram a rua invadida pelos caminhões de mudança e pelas caminhonetes de entrega. E, desastre final, um treco da rua acabou se transformando em estacionamento para automóveis e caminhões. Não eram raras as ocasiões em que os caminhões estacionavam durante dias, aguardando conserto ou carga.
Correndo o risco de atropelamento ou de caírem sentados numa mancha de óleo os meninos iam recuando. Jogavam apenas no final de semana ou no final da tarde, quando o movimento diminuía, e aos domingos – mas aos domingos havia o cinema (GOMES, 1987, p.34).

Essa passagem retirada do livro Terceiro Tempo de jogo, o qual descreve a estória de um grupo de amigos que começa a viver as experiências da passagem da infância para a adolescência, retrata o que ia ocorrendo em seu bairro, que começava a crescer a partir do desenvolvimento dos centros urbanos.
Esse desenvolvimento trouxe, é claro, vários benefícios, mas, também, um conjunto de contradições. Uma delas é esta mostrada na citação acima onde a rua se torna um espaço onde a falta de lazer e de convívio social – e mais tarde o medo e a violência – se tornaram características comum.
A cidade, em seu desenvolvimento, se tornou um espaço onde os conglomerados humanos tentavam sobreviver. Até o final do século XIX, poucos centros urbanos se destacavam mundialmente, inclusive no Brasil.
Esses espaços, ainda que desenvolvidos por conta da esfera econômica, eram espaços públicos que serviam entre outras coisas para o lazer. Ao lermos textos que tratam do urbanismo no final do século XIX e início do século seguinte, podemos perceber casos interessantes, como de pessoas que eram “quase” atropeladas pelos carros, tamanho era o uso desse espaço para o lazer; a rua era também lugar de muitas festas, como o carnaval que, antes de se tornar um produto como é hoje, era, antes de qualquer coisa, uma festa particularmente popular (SEVCENKO, 1992). As ruas, além disso, eram bastante ocupadas por pessoas de todas as idades.
Nas cidades européias do século XVIII, onde o fenômeno urbano surge com mais força, “tudo se passa na rua” (LIMA, 1988, 90) . Desde pobres até ricos ocupam tais espaços sem qualquer discriminação. Não havia diferenciação social nesse espaço, isto é, não havia restrições de quem podia ou não ocupar tal lugar. A rua era onde se fazia comércio, se encontravam amigos, e até para duelar. Era o local onde o público e o privado se misturavam.
Nessa mesma rua as crianças brincavam. “O espaço urbano é o seu universo; elas o utilizam à sua vontade” (LIMA, 1988, 90). Isso acontecia porque a casa, não era o espaço ideal para estabelecer tais relações. Sua função básica era apenas a de servir de recinto para alimentação e descanso. Assim, a rua era um espaço alegre, divertido, com várias atividades – lúdicas ou não –, voltadas para os diversos indivíduos e classes que a ocupava.
Com o passar dos anos e com o desenvolvimento maciço desses centros urbanos, a migração do campo para as cidades, o efeito da compressão espaço/tempo (Harvey, 1992), entre outra série de fatores, tornou a cidade um lugar onde não era possível a sua ocupação como espaços de lazer, pelo menos não na mesma intensidade e forma que antes. Mesmo praças, que eram reduto romântico dos jovens, torna-se um lugar obscuro e ficar nele até tarde da noite poderia representar um perigo eminente.
Aos poucos as cidades e suas ruas deixaram de proporcionar lazer aos transeuntes, sobretudo às crianças. Ela se torna, basicamente, um espaço de passagem, onde outdoors disputam espaço com boa parte dessas mesmas crianças, as quais ficam nos semáforos chamando a atenção para os produtos que tentam vender aos motoristas.
Para sanar a perda das relações provenientes deste processo, foi preciso criar formas de lazer que se adaptassem a essa nova condição; a televisão foi uma delas e, mais recentemente os jogos eletrônicos vieram oferecer às crianças e jovens, aventuras inimagináveis de ocorrer em espaços públicos reais.
Chegamos, assim, ao ponto nevrálgico dessa nossa discussão: com o desenvolvimento das cidades as pessoas foram perdendo formas de convívio e lazer, conseqüência da nova cultura que se formava, e fruto das transformações estruturais que o espaço geográfico urbano vinha sofrendo, e da própria violência. A realidade das ruas – o número e a velocidade dos carros, os espaços públicos transformados em espaços comerciais, produtivos, a violência e muitas outras particularidades – foi reconduzindo as pessoas, particularmente as crianças, para o centro das casas ou dos quintais, quando estes existem. Nesse espaço, em que a criança fica confinada, foi preciso readaptar formas de lazer e diversão, que com o passar do tempo ficaram cada vez mais virtuais.
O que se sabe é que o contexto atual das grandes metrópoles é um contexto onde a violência, a pobreza e a segregação espacial e cultural se fazem presentes. Influenciado por Raban, Harvey afirmou que a cidade é um lugar onde o sujeito é passível de várias possibilidades e transformações. Por trás dessas possibilidades e transformações “estava a tenebrosa ameaça da violência inexplicável, a companhia inevitável da onipresente tendência à dissolução da vida social no caso absoluto” (HARVEY, 1992, p. 17).
Todavia, para evitar essa dissolução uma possibilidade de organização existe. Entretanto, essa possibilidade ainda se estrutura sob uma ótica burguesa, que parece a cada dia menos estável. Nela, a organização espacial sobrevive mudando o velho pelo novo, mudando sua aparência, mas mantendo as velhas contradições e criando outras novas, sempre, porém, sob, uma mesma base, uma mesma essência.
Na verdade, essas contradições já existentes desde o surgimento da cidade burguesa, aparecem travestidas em outras máscaras, mantendo seu núcleo, isto é, suas contradições e antagonismos distintos, mas com outra face, que tem por função, a partir de mudanças estéticas, proporcionar a manutenção de sua forma de organização inicial.
Muitas dessas transformações começaram a se fundamentara partir do pós-guerra. Estas, em sua grande maioria vão dar novo fôlego ao modelo organizacional existente.
Dentro de nossos propósitos, tentaremos mostrar a relação dessas transformações, sobretudo a urbana, que levaram, indiretamente – ou diretamente – a adoção dos jogos eletrônicos no cotidiano de muitos jovens.
Tentaremos demonstrar dessa maneira que é com o desenvolvimento da cidade, e com a perda de espaços públicos para o privado, e com a violência, que as diversões de rua, coletivas, antes comuns, como bolas de gude, pipas, esconde-esconde, dão lugar a diversões circunscritas num espaço delimitado, cercado por muros e, muitas vezes, individualizadas.

A cidade em mutação

Hoje, é difícil criar um consenso sobre o que vem a ser o conceito ou uma teoria de cidade. Todavia, é possível discuti-la cidade levando em conta múltiplos fatores que dela fazem parte: fatores sociais, culturais, as ideologias, muitos nascidos na própria discussão cientifica do que vem a ser a cidade.
A cidade já existe desde a antiguidade. Sem muito esforço, é fácil constatar a existência de centros urbanos desde o Egito e Roma antiga e em outras localidades, conhecidas por nós através de inúmeros livros de história e de geografia. Todavia, deve-se atentar para um dado interessante. A cidade que existe hoje, e que se desenvolveu a partir do século XVII, não é a mesma cidade da Antigüidade; ela nasce em um contexto distinto, num novo contexto do desenvolvimento da sociedade atual. (VÉRAS, 2000)
Esse novo contexto e modelo de sociedade que advêm daí, têm a ver com o fomento da sociedade burguesa e assumem, dessa forma, “uma identidade burguesa” (Idem, p. 11). Portanto, a cidade vai fundando sua estrutura sob uma ótica distinta, numa estrutura atrelada a um modo de produção particular, o modo de produção capitalista.
Por trás desse contexto, a lógica burguesa elaborou uma ideologia e vários discursos sobre a esse centro urbano, como o da aglomeração, onde seus agentes se organizam individualmente com base no equilíbrio entre oferta e procura. Além disso, a cidade parecia, segundo essa visão, ser fruto de um modelo único, natural e necessário, deixando de lado seu caráter transitório e histórico, em favor de algo perene, imutável, mas progressivo, regulado pelas leis de mercado, onde tudo acontece de forma equilibrada, onde produção e consumo são equivalentes.
Logo, todo um conjunto formado por indústria e comércio se desenvolve e, em torno dele, residências, expandindo assim um núcleo – cidade – que tende a se fortalecer e se desenvolver, conforme a produção encontrava sua demanda.
Já teorizava Smith que,

é o poder de troca que leva à divisão de trabalho, assim a extensão dessa divisão deve sempre ser limitada pela extensão desse poder, ou em outros termos, pela extensão do mercado. Quando o mercado é muito reduzido, ninguém pode sentir-se estimulado a dedicar-se inteiramente a uma ocupação, porque não poderá permutar toda a parcela excedente de sua produção que ultrapassa seu consumo pessoal pela parcela da produção do trabalho alheio, da qual tem necessidade (SMITH, 1985, p.77).

Justamente por isso, os grandes centros deveriam se desenvolver ao ponto necessário de não pôr em risco o desenvolvimento das capacidades produtivas. Logo, esses locais deveriam crescer de modo a sofrer mudanças e demandar novas funções naturalmente: “todo tipo de trabalho ou ocupação começa a subdividir-se e aprimorar-se, e somente depois de muito tempo esses aperfeiçoamentos se estendem ao interior de um país” (SMITH, 1985, p.78). Isto é, para Smith e para toda uma corrente da economia clássica, seria inevitável que, ao seguir esse modelo de cidade, um processo de expansão aconteceria, trazendo, por conseqüência e de forma natural, benesse a todos.
Antes de tudo, ainda, era importante que fossem estabelecidas funções específicas para cada trabalhador, pois “uma vez estabelecida a divisão do trabalho, é muito reduzida a parcela de necessidades humanas que pode ser atendida pela produção individual do trabalhador”. (Idem, p.81). Isto é, tal divisão do trabalho proporcionaria a produção de produtos em larga escala, e o processo de troca dessas mercadorias sanaria de vez as necessidades humanas, proporcionando ao mesmo tempo o aumento da produção e das condições básicas para o desenvolvimento das forças produtivas, logo da população.
Com a divisão de trabalho, dentro da ótica da economia clássica, o processo de desenvolvimento das forças produtivas se torna tão necessário quanto natural, e isso define uma característica marcante dos grandes centros que é a de existir neles “certos tipos de trabalho (...) que só podem ser executados em uma cidade grande” (Idem, p. 80).
Tomando por base o pensamento de Smith em relação à sua época, a característica fundamental da cidade é o mercado, no qual cidadãos livres podem pôr em prática a troca, baseados em leis econômicas e políticas. Por trás disso há uma forma de organização baseada numa lógica cultural e intelectual dominante, neste caso, a da burguesia capitalista. Assim, todo um complexo de fatores e organização específicos está por trás da cidade, como as relações entre o campo e a própria cidade, o comércio interno e externo, e várias outras, sempre organizados por alguém, cuja característica essencial é ser uma “autoridade político-administrativa”, baseada em direitos e deveres dos cidadãos.
Nesse bojo, surge também o conceito de cidadão e cidadania. A totalidade da população passa, com o decorrer do tempo e com o apoio da ideologia organizacional, por diversas definições, como classe social, massa, multidão, etc., carregando assim vários conceitos ideológicos distintos (VÉRAS, 2000).
Entretanto, é importante ressaltar que a cidade não foi criada apenas para dar sustentação e criação de um mercado consumidor/produtor. A idéia de Marx da transformação da natureza pelo homem e seu desenvolvimento a partir dessa transformação é importante para entender o desenvolvimento dos centros urbanos. Levando isso em consideração, a cidade pode ser entendida como local produto e produtora das condições necessárias à vida dos homens, da mesma forma que viam os ideólogos burgueses. Todavia, o avanço do raciocínio marxiano, é que não se deve esquecer que o produto que nasce daí se insere numa lógica de produção capitalista, que como tal, tem suas contradições específicas.
De acordo com Marx, a cidade vai nascer da divisão do trabalho e pela separação do trabalho intelectual do manual, da mesma forma que admitia Smith. Mas isso não se dá de forma pacífica e natural como sugeria o economista inglês; na verdade, ela se desenvolve e implanta toda uma série de desigualdades e contradições, fruto dessa divisão, as quais passam a fazer parte dessa cidade, desde sua fundação.
Conseqüentemente, a cidade capitalista resultante dessa divisão social do trabalho e de um modo de produção específico, vai criando seus alicerces formado de um aglomerado de trabalhadores que vão se juntando em torno da estrutura formada nesse modo de produção:

A cidade aparece, pois, como o local da produção capitalista, reunindo o capital constante e o variável, a força de trabalho concentrada e suas condições de reprodução, [necessitando (de) e proporcionado] o alojamento da força de trabalho e os meios necessários à sua reprodução (VÉRAS, 2000, p. 53).

Esse modelo organizacional segrega a maioria dos moradores desse centro urbano, tanto no que se refere à sua condição profissional quanto à sua posição ocupada dentro da cidade, muitas vezes determinada pela sua própria condição profissional. Assim, fica determinado o lugar que cada um ocupa dentro desse locus, ficando defina sua posição geográfica, social e política.
Milton Santos nos lembra que o espaço denominado cidade “é agente que reproduz e acentua as diferenças de ocupação e localização, reforçando a lógica cultural do capital (transporte, infra-estrutura, economia de aglomeração e concentração)” (VÉRAS, 2000. p. 62).
Todas essas transformações têm por objetivo reproduzir e dar condições da manutenção desse mesmo modo de produção. A cidade e o urbano são o fruto de condições históricas que, em sua essência, se mantêm até hoje. Portanto, o desenvolvimento da cidade não é algo natural, como acreditava alguns autores, e tal lógica só tem por objetivo a manutenção de si mesma. Essa manutenção, hoje, além de ter todas aquelas características e contradições já apontadas por várias pesquisas sociológicas, traz consigo um mundo de desigualdades e de violência.
Essas contradições foram se tornando cada vez mais transparentes conforme a cidade se desenvolvia. Hoje, ela é mais transparente ainda. Para mostrarmos melhor essa situação de desigualdade e violência, escolhemos a cidade de São Paulo como exemplo, por ser uma cidade próxima da nossa realidade e que é bem parecida com os grandes centros mundiais.

São Paulo, uma cidade em transformação


São Paulo é hoje considerada uma das cidades mais violenta do mundo, por isso, é interessante tomá-la como exemplo para observar um pouco mais de perto essa violência e desigualdade que são duas de suas características principais.
O objetivo desse pequeno texto não é aprofundar a questão, mas dar um panorama geral das transformações que essa metrópole sofreu e que trouxe consigo o aumento da violência. Tal transformação vai ganhar força a partir do desenvolvimento econômico proporcionado, principalmente, com a implantação da cultura de café, e mais tarde (a partir da década de 30) com o desenvolvimento de um grande parque industrial, marcado por uma visão progressista e moderna. A cidade de São Paulo foi ganhando um status que lhe proporcionou o título de ‘a locomotiva do país’ (CALDEIRA, 2000, p.45). Todavia, a partir da década de 80, essa situação mudou não só no estado de São Paulo, mas em todo o território nacional.
Antes disso, ainda na década de 50, o país passou por um período de forte crescimento econômico centrado nas indústrias, basicamente na região sudeste por conta de possuir um parque industrial de grande porte e em constante desenvolvimento, o que demandava um aumento no número de contratações em vários setores da economia.
Em vista disso, “um número crescente de trabalhadores foi incorporado ao mundo dos salários e contratos formais de trabalho” (Idem p. 47). Boa parte dessa mão de obra veio de centros menos desenvolvidos industrialmente, geralmente do interior do estado, onde a economia era centrada na produção agrícola. Ocorreu, portanto, um processo de migração do campo, principalmente, para esses centros urbanos industrializados . Dessa maneira, “a maioria dos grandes habitantes de qualquer grande Estado agora vivia na cidade” (HOBSBAWN, 1997, p. 445), inclusive no Brasil, onde “a população urbana (...), que em 1950 constituía 36% da população total, em 1980 representava mais de 50% (...) em 1996 (...) 78%” (CALDEIRA, 2000, p. 46).
Todavia, as promessas de melhores rendimentos e uma vida mais confortável não acompanharam esse desenvolvimento. Ao passo que as cidades cresciam, era necessária uma infra-estrutura básica, como hospitais, escolas, saneamento, transporte, entre outras, que fornecesse o mínimo de vida e dignidade às pessoas. Isso, na verdade, até chegou a acontecer, “mas ao custo de uma queda de qualidade dos serviços e salários extremamente baixos pagos aos profissionais que os forneciam” (CALDEIRA, 2000, p. 48).
O contexto que se formava não só no Brasil, como na maioria do globo, era que “a transformação da estrutura do mercado de trabalho teve como paralelo mudanças de igual importância na organização industrial” (HARVEY, 1992, p.145), isto é, se formou um mercado informal em que as minorias excluídas – a grande maioria em muitos casos - podiam participar. Então,

o crescimento de economias ‘negras’, ‘informais’, ou ‘subterrâneas’ tem sido documentada em todo o mundo capitalista avançado (...) [indicando] o surgimento de novas estratégias de sobrevivência para os desempregados ou pessoas totalmente descriminadas (Idem, p.145).

Seguindo essas mesmas transformações, só que sob aspectos diferentes,

o Brasil tornou-se um país moderno com base numa combinação paradoxal de rápido desenvolvimento capitalista, desigualdade crescente e falta de liberdade política e de respeito aos direitos dos cidadãos. São Paulo é a região que melhor representa modernidade brasileira em todos esses paradoxos (CALDEIRA, 2000, p. 48).

Esses paradoxos começam a se intensificar a partir da década de 80. A “década perdida”, como muitos classificam tal período, trouxe, tanto para quem já era excluído do processo quanto para quem tinha alguma perspectiva, “insegurança em relação à posição social. A decadência social passa a ser uma perspectiva mais realista do que as possibilidades de ascensão” (Idem, p. 50). Então, com a diminuição dos postos de trabalho frente ao fechamento de fábricas, com o aumento do custo de vida, com a falta de infra-estrutura mínima, e outra série de fatores, a situação se agrava.
Nesse período, um panorama de recessão passou a imperar na economia brasileira e mundial. Como características se destacavam: altos níveis de inflação, o aumento da dívida externa e pública, pondo em risco o desenvolvimento do país; o investimento no setor social caiu, em grande parte aceitando acordos de ajustamentos econômicos propostos pelo FMI e outras instituições financeiras que se propunham emprestar dinheiro para financiar o desenvolvimento interno. Geralmente, esses acordos propunham metas econômicas para cada governo, no qual dever-se-ia economizar o máximo possível, gerando assim cortes especialmente no orçamento público. (FILGUEIRAS, 2000)
Enfim,
as conseqüências sociais da crise econômica foram devastadoras. Depois de uma década de inflação, desemprego e recessão, a pobreza adquiriu proporções alarmantes no começo dos anos 90 (...); os efeitos da crise foram especialmente duros para os pobres e agravaram a já desigual distribuição de renda (CALDEIRA, 2000, p. 51).

O abismo de desigualdades sociais que já existia no país tendeu a aumentar. No Brasil, uma minoria que se apropriava da maior parte dos rendimentos passou a tomar uma parte ainda maior desse montante, enquanto crescia o número de pessoas sem o mínimo de condições de sobrevivência.
“Num contexto de crise e de inflação no qual esperanças de mobilidade foram se frustrando, a insatisfação se tornou generalizada, especialmente nas áreas metropolitanas, onde a proporção de pobres é maior do que nas pequenas cidades” (Idem, p. 51).
Mesmo registrando quedas na taxa de crescimento e de migração o estado não parou de crescer, e ele foi um crescimento dado para as bordas, isto é, periferias, onde se sabe, as desigualdades são ainda mais gritantes.
Apesar dos vários movimentos sociais que surgiram, principalmente a partir da década de 80, darem esperança a população pobre, mostrando, com alguns resultados, que eles teriam a possibilidade de estabelecer os direitos políticos e de cidadão dessa população, uma nuvem ainda pairava – e ainda paira – sobre suas cabeças.
Essa nuvem é um estado de coisas que

acrescenta insegurança às já intensas ansiedades relacionadas à inflação, ao desemprego, e a uma transformação política que vinha afetando as configurações tradicionais de poder” nas quais as “relações sociais não mais podem ser decodificadas e controladas de acordo com antigos critérios (Idem, p. 51).

Assim,

a violência tanto civil quanto de aparatos do Estado, aumentou consideravelmente desde o fim do regime militar. Esse aumento no crime e na violência está associado à falência do sistema judiciário, à privatização da justiça, aos abusos da polícia, a fortificação das cidades e a destruição dos espaços públicos (Idem, p. 55).

No Brasil temos, de forma clara, expostas muitas das contradições de um sistema de produção que é comum em muitos países do ocidente. Essas contradições aparecem de forma límpida no que se chama sociedade civil brasileira – mas não só nela –, de duas maneiras:

em primeiro lugar porque o crescimento da violência em si deteriora os direitos dos cidadãos; e em segundo, porque oferece um campo no qual as reações à violência tornam-se não apenas violentas e desrespeitadoras dos direitos mas ajudam a deteriorar o espaço público, a segregar grupos sociais e a desestabilizar o estado de direito (Idem, p. 56).

Vivemos, desta feita, numa crise política e social sem precedentes em grande parte do mundo. Essa crise aglutina desigualdades, preconceito, descriminação e violência em um mesmo espaço, o espaço público. Freqüentar esses espaços novamente parece não estar mais em questão; a solução encontrada para isso e o que ela representou será mostrado em seguida.

A cidade e a perda do espaço público parte II

Por: Alex Antonio bresciani

Trocando o espaço público pelo interior das residências


Nas grandes cidades, num pequeno dia a dia, o medo nos leva a tudo sobretudo a fantasia. Então erguemos muros que nos dão a garantia de que morreremos cheios de uma vida tão vazia (...) nas grandes cidades, de um país tão violento, os muros e as grades nos protegem de quase tudo, mas o quase tudo quase sempre é quase nada e nada nos protege de uma vida sem sentido... (ENGENHEIROS DO HAVAII, 1991, faixa 9).

O trecho acima mostra um reflexo comum nas grandes metrópoles mundiais e brasileiras: o medo da violência e a tendência a viverem em, como classifica Caldeira, “enclaves fortificados” (CALDEIRA, 2000, p. 257). Esses enclaves têm seu exemplo mais marcante nos condomínios de luxo onde só podem circular seus moradores; qualquer pessoa diferente que esteja circulando nas redondezas passa a ser um suspeito em potencial. “A natureza do espaço público e a qualidade das interações públicas na cidade (...) estão se tornando cada vez mais marcadas pela suspeita e rejeição” (Idem, p. 259). Hoje, numa cidade como São Paulo, perdeu-se “alegria e segurança que nele [espaços públicos] se sentia” (LIMA, 1988, 13).
Não vamos nos aprofundar aqui nesse processo, muito bem estudado por Caldeira, só queremos constatar que nos centros urbanos, hoje, tem-se uma lógica de ‘segurança total’, isto é, se cercar de todos os tipos de formas contra a violência que se tornou comum na cidade, moldando a maneira com que os cidadãos convivem não só entre si, mas com o próprio meio em que estão inseridos. As pessoas parecem, pois, dispostas a abrir mão da liberdade, em troca de segurança, os quais são hoje “requisito em todos os tipos de prédios que aspirem a ter prestígio” (CALDEIRA, 2000, p. 261).
Essa preocupação vai ter início com muita propaganda por parte dos especuladores imobiliários ainda no século passado quando

pelo menos 10 anos antes [década de 70] de o crime violento aumentar e se tornar uma das principais preocupações dos moradores de São Paulo, a insegurança da cidade já estava sendo construída nas imagens das imobiliárias para justificar um novo tipo de empreendimento urbano e de investimento (Idem, p. 262).

Esse processo, contraditório em muitos aspectos, justificou a criação desses condomínios, dentro, é claro, da lógica de “´segurança total´”, conceito que não ficou restrito apenas a essas fortificações: “sejam casas familiares, independentes, sejam edifícios de apartamentos e condomínios, todos os tipos de moradia na São Paulo atual passaram por processos de enclausuramento em resposta ao medo do crime” (CALDEIRA, 2000, p. 291).
Assim, casas, apartamentos e outras construções passaram a implementar essa tendência. Quem tinha pouca renda, cercava suas casas com grades, muros altos, etc. Quem tinha um pouco mais de possibilidade financeira ia para os apartamentos, pois a “idéia de que os apartamentos são mais seguros de que casas é tão arraigada em São Paulo” (Idem, p. 285) e em boa parte do país.
Para as crianças isso foi problemático em vários aspectos. Como dito antes, a rua era o espaço onde relações sociais entre adultos e crianças aconteciam. Desde o século passado, todavia, esses espaços iam diminuindo, na mesma proporção em que aumentava o medo burguês de que

a violência explosiva da população poderia destruir a estrutura da sociedade (...), assim a rua adquiria cada vez mais a função única de circulação. Para a criança é o seu afastamento da rua (...), porque a rua é considerada perigosa para os filhos das famílias mais abastadas. As crianças passam a ser confinadas nas casas, nas creches, nos asilos, ou nas fábricas, dependendo da classe social a que pertencem (LIMA, 1988, 92).

Separada das pessoas com as quais partilham ou não afetos, a criança passa também

a estabelecer relações especializadas, cada vez mais freqüentes e exclusivas, dentro de espaços igualmente especializados e com tempos programados (...) Para reconstruir a unidade de relações afetivas, psíquicas e cognitivas, que lhe assegure simultaneamente a individualidade e a socialização, a criança terá de encontrar nas novas condições urbanas aqueles espaços permeáveis onde seja possível o jogo e as brincadeiras que envolvam os companheiros de mesma idade e observar o mundo dos adultos (Idem, 92).

Por conta dessa “valorização do isolamento e do enclausuramento e com as novas práticas de classificação e exclusão, estão criando uma cidade na qual a separação vem para o primeiro plano e a qualidade do espaço público e dos encontros sociais que são nele possíveis já mudou consideravelmente” (CALDEIRA, 2000, p. 297).
Numa pesquisa realizada em Itapeva, Lima (1988) aponta que as crianças de bairros mais rurais entendiam a relação com as ruas e onde estas as levavam: para casa de outras pessoas, geralmente conhecidas, a lugares específicos; elas sabiam onde se podia brincar, onde era perigoso, etc.
Então, a rua para elas não servia apenas como espaço de passagem como hoje nas regiões mais desenvolvidas. A rua era um elemento a oferecer alguma forma de relacionamento, além das lojas e vitrines, que convidavam ao consumo.
As crianças têm, dependendo da configuração espacial, e de como esta é ocupada, a capacidade de produzir formas de se relacionarem e de brincarem específicas. O que não se pode perder de vista é que o espaço público é marcado pelo adulto e pela forma com que eles apreendem esses espaços:

O espaço físico isolado do ambiente [e das brincadeiras] só existe na cabeça dos adultos para medi-lo, para vendê-lo, para guardá-lo. Para a criança existe o espaço-alegria, o espaço-medo, o espaço-proteção, o espaço-mistério, o espaço-descoberta, enfim, os espaços da liberdade ou da opressão (LIMA, 1988, 30).

Resta-nos, portanto, indagar: que espaços a sociedade contemporânea tem reservado para as crianças? Isto é, que possibilidades lúdicas e cognitivas são disponibilizadas às crianças, de qualquer condição econômica, inclusive, de modo que estas possam criar e aprender sem, necessária e precocemente, tornarem-se consumidoras? Que alternativa lhes resta, e também aos pais, senão o consumo de produtos, de suportes e de utensílios eletrônicos, geralmente performáticos, que acabam por confiná-los em casa como resposta aos perigos da rua o que pode, inclusive, incentivar o individualismo?
Levando isso em consideração nos é despertada uma preocupação em relação ao lazer infantil, afinal, se as crianças não podem mais ocupar os espaços públicos, e as casas são cada vez mais confinadas e funcionais, para facilitar a vida adulta, que tipo de brincadeiras restam?

A CIDADE MODERNA E A CRIANÇA

A forma como o espaço é organizado política, econômica e socialmente, e a maneira com que este é programado, direcionado e disponibilizado às pessoas, determina a forma como esse espaço é usado. Isso quer dizer que ele incide diretamente na forma de viver das pessoas; dependendo da forma de deslocamento de que se tem acesso, por exemplo, levando em conta algumas variáveis como salário, local onde se mora, etc., define-se o que se pode comprar, onde estudar, se divertir, etc. Assim, quem depende apenas de ônibus para se locomover terá uma experiência de vida diferente daquele que tem um carro.
Infere-se, pois, que existe uma lógica de organização espacial que ajuda a definir e dar forma ao espaço no qual as relações humanas são definidas, quase sempre excluindo grande parte da população que

passa a não ter voz nem vontade, nem mando, para aparecer com a feição traçada pela força da interpretação dada pelo poder. Suas necessidades, suas expectativas, e seus desejos passam pelo crivo interpretativo daqueles que o subjugam” que tem como reflexo um processo, “um processo de redução: redução cultural, redução de áreas, redução de material, e tudo se volta para o empobrecimento dos espaços (LIMA, 1988, 10).

Essa é uma forma distorcida, contraditória de cidade, quando confrontada com aquela apresentada pelos pensadores da economia clássica, que mostravam um espaço público de atividades sem limites, envolvendo quem quer que fosse, com total liberdade e felicidade, que se fosse posta em risco, seria rapidamente auto-regulada por intermédio do mercado.
Todavia, isso não acontece e a contradição que se gera a partir desse contexto

se apodera do espaço da criança e o transforma num instrumento de dominação (...) A organização e a distribuição dos espaços, a limitação dos movimentos, a nebulosidade das informações visuais e até mesmo a falta de conforto ambiental estavam e estão voltadas para a produção de adultos domesticados, obedientes e disciplinados – se possível limpos –, destituídos de vontade própria e temerosos de indagações (Idem,10).

Esse processo, essa forma de manter as crianças – e até mesmo adultos – confinados em casas e lugares especialmente preparados como as creches, se dá também por motivos externos, como a própria violência, que se tornou característica comum dos espaços públicos.
Como foi mostrado anteriormente, o espaço urbano criado obrigam as crianças a ficarem em locais organizados e criados pelo mundo do adulto, já acostumado a tal organização de espaço e de seus problemas. As atitudes destes são reflexos de um “condicionamento que atinge todos os indivíduos, nesta sociedade baseada na produção e na vinculação de valores de troca” (Idem, 12).
Mas, se o espaço físico é – deveria ser – onde “a criança estabelece a relação com o mundo e com as pessoas, [ele também é lugar] fruto de conhecimentos objetivos, lugar de relações vitais e sociais concretas, e determinado por elementos materiais que modificam a sua natureza e qualidade” (Idem, 14).
Logo, como os espaços são reduzidos - por conta de fatores já mencionados – tal relação e aquisição de conhecimento diminuem. E não só isso, a criança não tem outra opção a não ser mudar seu espaço e formas de brincadeiras. Não por sua própria vontade, mas pela imposição histórica que define para elas o espaço de brincar. As crianças, dessa forma, têm definida nem tanto as brincadeiras, mas principalmente os brinquedos que lhe são possíveis nesses espaços que são reflexos de uma lógica cultural distinta.
Em bairros populares, por exemplo, onde a quantidade de espaço para brincar é maior, a percepção de brincar é diferente daquela de crianças que vivem em apartamentos ou em centros urbanos mais avançados. No primeiro caso, as possibilidades são mais abertas, e a forma das brincadeiras tende a ser mais coletivas. Percebe-se, ainda, que as relações com vizinhos são mais intensas, se dão mais abertamente, ao passo que nos bairros onde a urbanização é mais constante, a relação é mais individual; perde-se contato com vizinhos e as relações são mais frias.
Geralmente isso é definido a partir das ações adulto que se pauta na realidade concreta que ele vivencia. Não raro, por conta disso, os pais abusam dos filhos criando mitos, manipulando-os, fazendo chantagem para que eles os obedeçam. Tal relação de poder do adulto sobre a criança “as empurra para a passividade e para a dependência em relação ao mais forte” (Idem, 34).
Essa relação dá a sensação de que é o pai quem escolhe para o filho a forma de relação e experiências que este deve seguir, com a intenção muitas vezes de mostrar-lhe o que é melhor para a criança, e assim protegê-la.
E foi com esse argumento que, para driblar a falta de espaço para uma diversão infantil segura, criou-se novas formas de diversão e de ocupação espacial: surgem assim os game-center, os “Play-centers, os ringues de patinação, as danceterias ou, mais recentemente, as pistas de skate ou os clubes” (Idem, 93), que segregam uma boa parte de crianças e de jovens que não têm como manter financeiramente tais diversões ou até mesmo se deslocar até eles, ficando o acesso a esse tipo de lazer restrito a apenas uma minoria. Mesmo reservado ao lúdico, esse espaço não deixa de ser ocasião para o consumo e reflexo de uma condição social particular . Trata-se de espaços onde relações de poder se colocam e que não deixam de criar formas de poder, de manifestações concretas de dominação social e cultural (OLIVEIRA, 1986).
E como se sabe, realidade de lazer das crianças se limita às atividades na creche, na escola, nos parques e locais específicos de jogos; trata-se de sistemas fechados que oferecem mercadorias a serem consumidas passivamente, sem espaço para interagir “o maravilhoso, o imaginário e o espontâneo” (Lima, 1988, 54).
Destarte,
o comportamento das crianças diante da limitação imposta nos seus movimentos aponta para algumas questões: até que ponto a limitação de movimentos leva a mudanças de comportamento da criança?, qual a sua influência no seu desenvolvimento e qual pode ser a duração dessa influência? (Lima, 1988, 50).

Valho-me aqui de um exemplo particular, me referindo a escola onde estudei durante o primeiro grau. Nela havia espaços amplos, onde se tinha acesso à quadra de esportes e a todo o terreno que ali existia. No intervalo, para as crianças aquilo era um paraíso, era difícil alguém não praticar algum tipo de brincadeira ali, pega-pega, esconde-esconde, futebol, queimada, amarelinha, etc., além de interagir mais ativamente com os amiguinhos e com o próprio espaço da escola. Era difícil alguém conceber a escola como uma coisa ruim, que não desse prazer.
Alguns anos depois, alegando motivos de segurança, o pátio da escola, que representava seguramente menos de 20% do espaço útil que ali existia, foi cercado, e os intervalos deveriam ser realizados apenas ali. Não preciso dizer que aquilo eliminou em grande parte o prazer das crianças, pois além de diminuir o espaço e os tipos de brincadeiras que poderiam ser realizadas reforçou ainda mais a relação de poder entre adulto e criança, onde os inspetores de alunos coibiam qualquer tipo de brincadeira que atrapalhasse as atividades da diretoria e o descanso da sala de professores.
Além disso, nenhuma política pedagógica foi implantada para dar conta dessa nova realidade que foi apresentadas aos estudantes. Os alunos foram simplesmente deixados e vigiados ali, esperando soar o sinal para voltarem frustrados à sala de aula.
Algumas saídas foram sendo encontradas pelas crianças: fumar nos banheiros, jogar baralho escondido, ficar brigando ou iniciando a vida “amorosa” nos bancos do pátio, quando não escondido nas salas de aula. Alguns até conseguiram resgatar algumas brincadeiras como bola de gude, num local não cimentado próximo à sala de professores. Todavia, como isso atrapalhava, passou-se a cultivar um jardim no local, impossibilitando de vez as brincadeiras.
Assim, as crianças acabam tendo sua imaginação e movimento limitado por muros e grades, não tendo mais como desenvolver certas habilidades e brincadeiras que antes existiam, ficando assim excluídas de determinados processos de sociabilidade e cognição.
Com isso, muitos tipos de brincadeiras forma sendo deixadas para trás para ceder espaços a outras atividades de lazer e de sociabilidade. A criança, além de perder o espaço físico, perdeu em muitos casos o contato com os outros, não só na escola, mas com a rua. Crianças entrevistadas por lima

pareciam conformadas ou acostumadas a permanecer nos apartamentos ou, quando muito, no pátio do prédio: ‘brinco mesmo é no meu apartamento; às vezes brinco lá em baixo do meu prédio, mas minha mãe não gosta; na rua não brinco nunca, por que é perigoso (Idem, 97).

Além disso, com o acelerar deste processo, nos parece que a percepção do que vem a ser espaço público parece ter diminuído sensivelmente. Se levarmos em conta os dados obtidos pela pesquisa que realizamos, isso parece correto. Quando questionados se realizam outras atividades lúdicas além do jogo eletrônico, a maioria respondeu que sim.
Dentre essas atividades a que mais se destacou foi a de esportes coletivos, sobretudo futebol. Sabemos que esses esportes normalmente são realizados em locais públicos, como quadras de escolas, centro comunitário e a própria rua. Entretanto, apenas 45% destes afirmaram usar algum tipo de espaço público de lazer. Entre o total de entrevistados, apenas 32% fizeram essa afirmativa. Ou eles não mais reconhecem esse espaço de lazer como sendo público ou não mais o consideram assim.

Com as brincadeiras ocorrendo em espaços confinados, frios e individuais, o mundo desses jovens acaba sendo também mais limitado. Constata-se que para muitos – isso já no fim da década de 70 – o lugar para se divertir é o prédio; a rua fica mesmo como espaço de passagem.
Logo, ao tirarem os filhos das ruas, com o intuito de livrá-los da violência, os pais acabam adotando maneiras de ser – morar, vestir, divertir, etc. –, que são definidas por essa forma de organização instrumental, que tem por objetivo dar respostas aos problemas criados por uma forma mercantil de organizar o social.
Nesse sentido,

as ruas foram deixando de ser espaço de reunião e convivência da sociedade, reduzindo as possibilidades de florescimento e associativismo infantil, todo ele baseado nos jogos e brincadeiras de rua (...) As crianças passaram a ficar presas em casa, tendo a televisão e os brinquedos [industrializados] como companheiros (Oliveira, 1984, p. 31).

Sua realidade acabou reduzida a formas de brincar e de conviver delimitadas pela lógica do lucro, que foi uma das grandes responsáveis por moldar esse espaço e as possibilidades que ele oferece.
Finalizamos aqui este texto, mas sem esgotar a discussão em torno do tema. Nossa intenção foi apenas de levantar algumas considerações de como é possível hoje a aceitação de certas formas de lazer e convivência, como os jogos eletrônicos e a televisão no contexto familiar, em detrimento da perda de espaços públicos de lazer para uma forma mercantil e do medo da própria violência que estes espaços reservam.


Bibliografia.


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sábado, 2 de fevereiro de 2008

Microsoft anexa Yahoo?

Essa samana, alguns sites divulgaram uma matéria a respeito de uma proposta de compra da Yahoo pela Microsoft de U$ 44,6 bi.

Muitos aspectos podem ser levantados em relação à essa fusão, como aponta o site de noticias do terra:

"Analistas temem que funcionários contrários à Microsoft liderem um êxodo de talentos do Yahoo para o Google e outras empresas, pois, diferentemente das fusões de companhias com bens fixos e patentes valiosas, o principal bem do Yahoo são seus funcionários e sua expertise na Web.

"Se você é um engenheiro genial que trabalha com busca ou em outra divisão do Yahoo, vai querer ser usurpado para a cultura da Microsoft, onde talvez não se dê tanta importância à Internet?", diz o analista Bob Peck, da Bear Sterns, a seus clientes. "O choque de culturas será uma das coisas mais importantes."

As duas empresas têm visões de mundo fundamentalmente diferentes. O Yahoo, sediado em Sunnyvale, Califórnia, sempre foi uma companhia de Web, enquanto as raízes da Microsoft são a venda de softwares que rodam no hard drive dos computadores.

Microsoft Office e Windows são seus principais produtos, que geram o grosso dos lucros da companhia. Em contraste, sua divisão de serviços online não dá lucro há dois anos.

O maior desafio de todos pode ser integrar as duas companhias com a sobreposição das propriedades Web. Analistas questionam se um MSN/Yahoo pode manobrar rápido o suficiente e tomar as decisões certas dentro da burocracia da Microsoft para cortar produtos similares como e-mail Web e programas de mensagens instantâneas. O Yahoo Mail e o Hotmail da Microsoft são as companhias de Web número 1 e 3 dos EUA.

A Microsoft diz esperar poder tirar US$ 1 bilhão em "sinergias" ao unir recursos de engenharia, pesquisa e desenvolvimento, reduzindo gastos de capital e a área de sobreposição.

Uma crítica constante contra a Microsoft é que a empresa confunde seus clientes com excessivas marcas de serviços Web, como Windows Live, Hotmail e MSN. Adicionar o Yahoo à mistura só complica as coisas.

O Yahoo, como a maioria das grandes companhias de Internet do mundo, administra vários de seus serviços com os softwares chamados "open-source", criados por voluntários. Estes softwares são os principais rivais dos softwares Windows e Exchange, da Microsoft."

fonte: http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI2315587-EI4795,00.html

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Jogos eletrônicos, violência e proibição.

Por Alex Antonio Bresciani

Uma dimensão relevante do ciberespaço é a dos jogos eletrônicos. Elemento de polêmica desde o final do século passado, eles voltaram a figurar entre as manchetes de jornal. Com o intuito de expandir nossa discussão, durante este mês voltaremos nossa atenção para este objeto, publicando algumas impressões a respeito do tema Fica aberto à contribuição dos interessados em fazer comentários ou enviar algum texto que possa enriquecer o debate.

A proibição dos jogos eletrônicos no Brasil. O caso Counter-Striker

Por Alex Antonio Bresciani

No inicio de janeiro de 2008, começou a ser colocada em prática a decisão da 17ª Vara Federal de Minas Gerais proibindo a venda em território nacional de dois jogos de computador multiplayer em rede: o Counter Striker e o Everquest. O argumento básico da ação pública é o de que esses jogos são extremamente violentos e influenciam seus usuários a praticar atos de violência na vida cotidiana (PROCON/GO... 2008).

Isso me fez folhear uma pesquisa que fiz durante a minha graduação com o apoio da Fundação de amparo à pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) em que analisava o mesmo tema (BRESCIANI, 2002). Naquela época, em 1999, aconteceram dois fatos que chamaram muito a atenção da opinião pública a respeito daquela temática: o caso Morumbi Shopping em São Paulo e o massacre de Colarado no EUA. No primeiro, um jovem chamado Matheus, foi assistir ao filme “Clube da Luta” em no cinema daquele Shopping. Ele consegue entrar com uma submetralhadora e, durante a exibição do filme, abre fogo contra vários espectadores que ali se encontravam. Logo se atribui a culpa do ato nos jogos violentos que ele tinha instalado em seu computador, tese essa sendo descartada mais tarde, pois logo se descobriu que ele, além de usuário de drogas, tinha problemas psicológicos. O segundo caso aconteceu nos Estados Unidos, onde dois garotos entraram na escola em que estudavam e mataram doze alunos e um professor, suicidando-se em seguida. Os jogos violentos também foram atribuídos como causa, mas tal tese também foi logo descartada com base em uma série de outras evidencias encontradas durante a investigação.

No caso de Minas Gerais, nenhum crime brutal como aqueles aconteceu. A nota no site do Procon de Goiás, um dos estados a se colocar em prática as medidas proibitivas, há uma nota explicando a adoção dessa ação pública, onde se lê:

o Everquest, leva o jogador ao total desvirtuamento e conflitos psicológicos “pesados”; pois as tarefas que este recebe, podem ser boas ou más. As más vão de mentiras, subornos e até assassinatos, que muitas vezes depois de executados, o jogador fica sabendo (ou não) que era apenas uma armadilha para ser testado para entrar em um clã (grupo).(PROCON/GO... 2007).
O jogo Everquest se passa em um mundo de fantasia medieval no qual os jogadores criam um personagem e por meio dele interage com os outros jogadores. Na maioria dos casos, as ações acima descritas não são propostas pelo jogo em si, mas como a própria nota ressalta, pelos outros jogadores que cobram dos novatos certas atitudes para participar de seu grupo formado dentro do jogo. O jogador não tem que necessariamente aceitar as tarefas.

Enquanto isso, no Counter Striker, o jogo simula, de uma outra forma, a velha brincadeira de policia e ladrão. O título foi um dos jogos que mais fazem sucesso nas Lan House desde o seu lançamento em 1999. É raro uma Lan House não ter esse game disponível em seus computadores. (FREDERICO, 2003, p.1)

O jogo permite que até 16 jogadores simultâneos participem da partida. Entre os 16 são formados dois times: metade vai para o time de “bandidos” e metade vai para o de “policiais”, tipo a swat, onde cada time tem que defender um objetivo específico.

O jogo possui vários cenários pré-definidos, como fábricas abandonadas, aeroportos, entre outros. Basicamente esses cenários permitem desenvolver dois tipos de ação de jogo. Em uma delas, cabe aos terroristas manterem em cativeiro um determinado número de reféns durante um certo período de tempo. Em outro, eles devem colocar uma bomba em um lugar do cenário e acioná-la também em um período fechado de tempo.

No primeiro caso, os policiais devem encontrar os reféns e resgatá-los, enquanto no segundo, eles devem interceptar a bomba. Na maioria dos casos, como é normal em qualquer filme de ação, é inevitável que um grupo entre em combate com o outro a fim de cumprir seu objetivo.

Terminada a contenda, basta iniciar novamente o jogo na mesma, ou em outra tela se for o caso, e reiniciar a disputa. Ao vencer o jogador ganha uma determinada quantia que lhe permite investir na compra de armas – metralhadoras, fuzis, revólveres, etc. – e em equipamentos – colete a prova de balas, granada de fumaça, kit para desarme da bomba, etc. – melhorarando o desempenho individual no jogo e, conseqüentemente, de seu grupo.

Uma das preocupações principais do Juiz em relação à este jogo é de que “o participante pode escolher o lado do crime: virar bandido para defender a favela sob seu domínio. Quanto mais PM´s matar, mais pontos” (PROCON/GO...2008).

Na verdade, com base nas observações que realizamos em campo em nossa pesquisa (BRESCIANI, 2002) pouco importa ao jogador o lado que vai escolher. A graça do jogo esta mais frustrar o outro time a conseguir seu objetivo, sendo comum o mesmo jogar mudar para o time da “policia” ou dos “bandidos” várias vezes. O jogo é mais encarado como uma gincana em que dois grupos têm que conseguir um objetivo e vão lutar para isso, dentro das regras permitidas pelo jogo. Se o jogo é baseado no policia e ladrão tais regras envolvem o uso de armas. Além disso, a questão da busca incessante por pontos como foi salientado acima tem pouca relevância, pois os equipamentos e armas que são comprados com eles não custam muito, sendo de fácil aquisição no jogo.

Não bastasse essa falta de conhecimento do mecanismo do jogo, que leva a uma análise superficial, a ação pública é falha por orientar sua argumentação na característica de que no jogo Counter Striker, “traficantes do Rio de Janeiro seqüestram e levam para um morro três representantes da Organização das Nações Unidas. A polícia invade o local e é recebida a tiros (...) A trilha sonora é um funk proibido” (PROCON/GO). Da maneira como é colocado, parece que a única opção no jogo seria esta: introjetar a personalidade do “bandido” e matar a “policia”.

Isso também se mostrou como uma outra grande falha da ação, pois este cenário, que não faz parte do jogo oficial, foi usado como base nas argumentações para a proibição. É como se proibissem as pessoas de andar de carro por elas usarem gasolina adulterada.

Talvez o Juiz não saiba, mas é possível a criação de cenários paralelos, por meio de ferramentas disponibiliza aos usuários mais criativos a fim de ferramentas de criação de cenários além daqueles fictícios que já acompanham o jogo. É possível encontrar na Internet uma série desses cenários feitos pelos usuários que os disponibilizam gratuitamente a fim de dar aos jogadores novas possibilidades de jogo.

Um deles se passa no centro de São Paulo, e outro, citado acima, e conhecido pelos jogadores como “cs_rio” é o que se passa em uma favela uma favela do Rio de Janeiro. A trilha sonora é embalada pelo pagode de Bezerra da Silva e por um Funk proibido no Rrio de janeiro por fazer alusão à facções criminosas e ao tráfico de drogas. A preocupação do programador foi o de recriar com coerência um cenário que estamos acostumados a ver freqüentemente nas novelas e nos telejornais. Quando, na pesquisa de que realizamos, conversávamos com os jogadores de Conter Striker, ficava evidente que sucesso desses cenários pouco tinham a ver com o fato de se poder jogar com traficantes do Rio de Janeiro, mas sim pelo fato de lhes proporcionar um jogo um pouco mais próximo da realidade brasileira, coisa rara em um jogo de videogame.

Além desses dois jogos em questão, a ação pública, faz um ataque direto aos demais jogos considerados violentos. Segundo o site “os jogos violentos ou que tragam a tônica da violência são capazes de formar indivíduos agressivos, sobressaindo evidente que é forte o seu poder de influência sobre o psiquismo, reforçando atitudes agressivas em certos indivíduos e grupos sociais” (IDEM).

Até que ponto se pode afirmar com tanta certeza que existe realmente uma relação de causa e efeito entre a violência e os jogos violentos?

Abarcar uma resposta positiva talvez tenha sido a melhor escolha, pois existem pesquisas que demonstram exatamente o contrário. Um estudo sobre jogos violentos, realizado pelo psicólogo inglês David Lewis, permitiu concluir que os jogos violentos pode ter efeitos positivos. Usando uma metodologia diferente daquela aplicada na maioria das pesquisas que apontam o lado negativo dos jogos, as quais baseiam seus resultados sobre a agressividade do usuário com base no aumento de seus batimentos cardíacos quando joga, o pesquisador percebeu que o jogo

permitiu aos jovens descarregar suas frustrações nos inimigos virtuais. Além disso, o teste mudou a idéia deles sobre as respostas físicas associadas com a raiva. Ao invés de interpretar mudanças relacionadas a raiva como o rápido batimento cardíaco e o aumento da tensão muscular, eles conseguiram vê-las como reações da adrenalina ao excitamento. Por último, você precisa de reflexos rápidos para jogar Quake III , o que oferece distrações originais para a raiva dos voluntários. (QUAKE... 2000)

Além disso, esses jogos podem ter outras características positivas, como ressalta uma outra pesquisa realizada junto à usuários do jogo Counter Striker nos EUA: “o game é muito mais do que um jogo de tiro em que você tem de matar qualquer coisa que se mova. Jogos como Counter-Strike, que dependem de confiança e cooperação, fazem nascer grandes comunidades e amizades" (COUNTER..., 2003)

Outras pesquisas como as de Goldstein (2000) que, ao estudar os crimes violentos nos EUA, concluiu que a relação de causa e efeito de casos de violência tem pouco ou nada a ver com o uso de jogos eletrônicos. Resultado similar ao obtido por uma pesquisa encomendada pelo jornal Inglês The Guardian que isenta de qualquer culpa dos jogos sobre o comportamento violento de alguns adolescentes e adultos (CRIANÇAS...). Muitas outras pesquisas poderiam ser inseridas seguindo a mesma linha, o que não é o caso aqui.

O caso é que mesmo assim os jogos forma proibidos. Na verdade, com base naquele mesmo argumento, outros jogos já foram proibidos no território nacional, além da elaboração de uma série de outras tentativas. Em 2002, por exemplo, De Velasco, na ocasião deputado do PSL-SP, tentou proibir jogos tipo Counter Striker no Brasil. Sua alegação era simples: “Então, se ela mata alguém num jogo e amanhã ela vai jogar novamente e a mesma pessoa aparece ali naquele jogo, é sinal de que aquela morte na realidade é uma morte virtual, ela não existiu e a pessoa está ali novamente. Amanhã, ela se defronta com uma situação parecida, acredita que matando uma pessoa não haverá conseqüência nenhuma e que não vai responder por um crime, e isto acaba por sedimentar-se na sua própria consciência e ela admite que na vida real é o mesmo que na vida virtual” (CÂMARA..., 2002).
A impunidade, como sabemos, não se assenta numa premissa virtual, mas bem real que é a própria incapacidade do próprio código penal brasileiro que é falho e mal trabalhado. Além disso, se a violência se desse pela imitação como sugerem essas personalidades, a coisa seria pior se levarmos em conta a quantidade de violência presenciada na televisão.
Pesquisas como a de MIGLIACCIO (2001) sugere que a sua programação é muito mais nociva que em relação à violência que os jogos eletrônicos. Na pesquisa o autor acompanhou a programação da rede Globo por dois dias onde quase 2500 cenas de violência foram exibidas nessa emissora, sobretudo “nas obras de ficção e nos comerciais de programas da própria Globo” (MIGLIACCIO, 2001).

O problemático é que muitas dessas cenas de violência são veiculadas em horários considerados “livres”. Apesar de ter sido realizada em 2001, é provável que o número de cenas de violência possa ter aumentado. Hoje é raro encontrar um desenho que não tenha algum tipo de violência (muitas vezes transformadas em brincadeira pelas crianças). Não bastasse isso, é mais do que comum as crianças acompanharem conteúdos impróprios para idade delas dentro da própria casa.

O que não se pode esquecer é que "a violência hoje é um produto comercial. ‘É mais barato e dá lucro’” (ZAPPA, 1998). A televisão, nesse contexto, se apóia nesse conteúdo de forma clara e sem rodeios, basta ligar o televisor e acompanhar a programação para constatar tal fato. O que importa é a audiência que garante a lucratividade de tal meio, cuja fonte principal são os comerciais .
Na pesquisa que citamos ter realizado, umas das comparações que fizemos foi o tempo diário que o usuário se ocupou com jogos e o tempo que ele se ocupou assistindo televisão durante o dia. Em média, ele ficava jogando cerca de 1 hora e 24 minutos, enquanto o tempo gasto com televisão foi de 3 horas e 37 minutos. Mais que o dobro. (BRESCIANI, 2002).

Enquanto na televisão o usuário apenas se recosta na poltrona e absorve seu conteúdo violento (que vai além do uso de armas ou assassinatos) de forma indiscriminada, no jogo, como vimos, o usuário interage com ela, o que o faz descarregar, qualquer agressividade.

Mesmo assim apenas os jogos foram considerados “impróprios para o consumo, na medida em que são nocivos à saúde dos consumidores, em ofensa ao disposto nos artigos 6, I, 8, 10 e 39, IV, todos do Código de Proteção e Defesa do Consumidor” (PROCON/GO).

Se a lei deve ser aplicada igualmente para todos por que não se proíbe também a veiculação destes conteúdos televisivos, ou de produtos como os cigarros, ou bebidas alcoólicas, ambos consumidos abertamente por menores e que na prática são muito mais nocivos que os jogos eletrônicos considerados violentos? O mais estranho é, como vimos que nesses últimos uma relação de causa e efeito, como presume o juiz, parece não existir.

Considerações Finais

Ao elaborar este artigo, fui averiguar os principais artigos nos quais o magistrado fundamenta seu argumento. Segundo eles:

Art. 8° - Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.

Art. 10. - O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.

Art. 39. IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços (Código... 1990)
Quando se compara a proibição daqueles jogos sob o prisma dessa lei e se compara com o cigarro ou das bebidas alcoólicas, que se enquadram de forma mais impactante à ela e até mesmo ao argumento do Juiz em relação ao jogos é inevitável se questionar por que estes últimos continuam a ser vendidos de forma explicita.
Fica claro que são dois pesos e duas medidas. Não deixo de pensar neste momento naquele jargão jurídico que diz que “a justiça é cega”, isto é, neutra, sem juízo de valores, fundamentada em evidências empíricas e científicas.
Parece que este não foi o caso nesta proibição: senão vejamos: além do juiz deixar claro que não se fundamentou em pesquisas cientificas, ou se fundamentou parece ser naquelas cujos métodos de obtenção de resultados são amplamente refutados, ele parece não ter nenhum outro conteúdo do objeto que trata a ação civil pública.
A fundamentação acaba sendo um tanto quanto arbitrária. Como se diz no mundo jurídico, o ônus da prova cabe a acusação e, até onde sabemos, não é consenso no mundo cientifico de que jogos violentos provoquem atitudes violentas no usuário. Mesmo naqueles casos reais de violência em que se culpou os jogos pelos atos dos praticantes, o argumento foi mais tarde descartado. Fica a impressão, ao observar essa ação civil pública, de que os profissionais de nosso aparelho jurídico, excluindo-se alguns poucos, é despreparada e ignorante. Como vimos, a ação pública é repleta de equívocos sob muitos aspectos. Não considera outros estudos sobre o tema e muito menos parece levar em conta uma série de fatores inerentes ao objeto estudado.
Por exemplo, esses jogos são para serem jogados em rede, de modo que só são possíveis de serem consumidos por dois tipos de público: aqueles que tem computador em casa e acesso à Internet, que é uma parcela muito pequena da população brasileira, ou então aqueles que tem condição de pagar para alugar computadores com os referidos jogos em Lan Houses para jogar. Em grande maioria é uma elite que tem acesso à ambos os casos, mesmo com a queda de preços dos computadores ou mesmo a proliferação de Lan Houses na periferia.
Além disso, tais jogos são, mesmo que tenham a venda proibida lojas, são facilmente adquiridos. Talvez o juiz não saiba, mas o jogo Everquest, tem seu servidor fora do Brasil e ele só pode ser jogado se a cópia de uma versão de demonstração, que pode copiada gratuitamente no site oficial ou de aficionados, for feita. No caso do Counter Striker, além de milhares de cópias piratas disponíveis, ele também pode ser comprado via Internet em lojas virtuais.
É para fazer isso que pagamos nossos magistrados? Para desperdiçar o seu tempo e nosso dinheiro com leis inócuas?
Na verdade nem seria necessário que se perdesse tempo com a elaboração de tal lei. Bastaria adaptar uma iniciativa muito mais democrática e coerente que já é norma, por exemplo, no Rio de janeiro desde 2003: a lei 3.634 (ver também lei municipal 4197 de São Paulo), de autoria da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente que proíbe "a freqüência e manuseio nas lojas comerciais e shopping centers, por crianças e adolescentes, de programas informatizados, de quaisquer espécie de jogos, que induzam e estimulem a violência" (MESQUITA, 2003).
Como complemento, desde 2006 já existe norma que determina que os fabricantes e distribuidores exibam nas caixas dos games a classificação adequada, considerando, para fim de avaliação, a faixa etária que não se recomende, por conter violência, prática de atos sexuais e desvirtuamento de valores éticos e morais.
Então, a alegação dos artigos 8º, 10º e 39 inciso IV levantados como argumento do Juiz não seriam mais necessários, afinal tanto a portaria de 2006 quanto a lei de 2003 daria as informações necessárias, protegeria o consumidor da ignorância e da fraqueza e, por deixar o uso desses jogos não mão de adultos responsáveis resolveria o problema dele se tornarem risco à saúde ou a segurança.
A questão é que essas medidas esbarram no problema da fiscalização, o que demonstra uma certa insuficiência operacional do poder púbico. Mas o governo por si só não pode ser responsável por tal controle. Ela depende em grande medida da ética dos donos de lan houses em cumprir tais determinações e das lojas que comercializam esses jogos em não venderem esses jogos para aqueles que não se enquadram em tais faixas etárias. Mas, em um país onde qualquer adolescente pode adquirir revistas pornográficas em bancas de jornal, talvez tal conduta seria difícil de ser seguida.
Uma outra saída para isso seria o acompanhamento dos país, mas em uma sociedade em que tanto os pais quanto a mãe tem que se dedicar quase exclusivamente à jornadas de trabalho exaustivas para fornecerem o mínimo para suas família, um controle direto ao que seus filhos consomem parece ficar em segundo plano.
Portanto, em nosso entendimento, a proibição de jogos considerados violentos deve ser revista à luz de alguns aspectos que colocamos aqui. Não descartamos que existam problemas relativos ao conteúdo destes jogos, mas a sua proibição é um retrocesso do ponto de vista democrático e um desastre do ponto de vista jurídico, haja visto, que como mostramos outros meios legais poderiam ser usados para um mesmo fim.
De modo geral, isso tudo demonstra não só a falta de preparo de nosso corpo jurídico, que não leva em consideração aspectos elementares e particulares da sociedade brasileira, bem como a falta de embasamento teórico e cientifico.
Muito provavelmente essa será uma lei que, como muitas outras no Brasil, não irão funcionar, como aponta o advogado especializado em direito de informática Omar Kaminski, que duvida da eficácia de se fazer leis para enfrentar situações deste tipo: “Nos Estados Unidos, por exemplo, as leis estaduais que tentaram adicionar limites à violência nos videogames além de inócuas foram consideradas inconstitucionais.” Leis como estas apenas servirão para demonizar os jogos eletrônicos.

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