quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Os novos signos do velho sistema capitalista

Por:
Alex Antonio Bresciani

Segundo Haim Grunspun, “é difícil encontrar algum adolescente ou um jovem que não tenha tido contato com os videogames” (GRUNSPUN, 2001: 1). Dados apontam que a indústria de entretenimento eletrônico é um dos ramos indústrias que possibilita altos ganhos. Em 2002 essa cifra girou em torno de U$ 10, 3 bilhões de dólares (VENDAS..., 2003: 1).

Em número de jogos, segundo dados de 2000, apenas nos Estados Unidos, um dos paises que mais consome e produz jogos eletrônicos no mundo, foi comercializado pelas 10 maiores softhauses1 mais de 87 milhões de cópias de jogos apenas para os consoles domésticos2, cifra que seria maior se fossem levados em consideração os jogos para computador e periféricos relacionados.

Assim, conclui Grunspun, “alguns pais ficam assustados com a explosão da oferta desses jogos. Acreditam que seus filhos são de alguma forma hipnotizados por esses programas, escravos dos cada vez mais sofisticados equipamentos que chegam ao mercado” (GRUNSPUN, 2001: 1).

Por exibirem elementos violentos, que supostamente induzem crianças e jovens, seus principais consumidores, a comportamento agressivo, esses jogos passaram a suscitar preocupação. Uma, dentre várias questões que poderia ser analisada dentro desse tema seria: por que tais jogos fazem tanto sucesso e vendem em grande quantidade já que seus usuários, acabam consumindo apenas a violência que deles é característico, ainda que está seja virtual?

Talvez alguns teóricos do pós-modernismo nos ajudem a compreender esse fenômeno, isto é, como foi possível que uma indústria, ramificação de algo mais complexo, que supostamente não traz nenhum beneficio em seus produtos finais se tornou o que é.

Segundo David Harvey, “o período que vai de 1965 a 1975 tornou cada vez mais evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter as contradições inerentes ao capitalismo” (HARVEY, 1992, p.135), isto é, a chamada “era de ouro” do capitalismo (HOBSBAWN, 1995: 223) estava em decadência. Esse período era caracterizado, pelo menos nos países centrais, pelo pleno emprego, altos salários, desenvolvimento da indústria, dentre outras características. É nesse período que a sociedade, sobretudo a da informação, começa a passar por mudanças drásticas: o desenvolvimento do microchip, a massificação da televisão, a implantação de multinacionais. Assim, começa uma nova era onde “a mudança tecnológica, a busca de novas linhas de produtos, (...) medidas para acelerar o tempo de giro do capital passaram ao primeiro plano das estratégias corporativas...” (HARVEY, 1992: 137).

Isso levou a formar novas “experiências nos domínios da organização industrial e da vida social e política” (HARVEY, 1992, p.140), mais “flexível”, onde a “rigidez” do fordismo não seria mais possível. Essa nova experiência social e cultural foi denominada pelo autor de “Acumulação Flexível”. Segundo ele, “ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos produtos e padrões de consumo” (HARVEY, 1992: 140).

Dessa maneira, todo um contexto de pleno emprego e estabilidade que era característica da “era de ouro”, e toda uma “lógica cultural” fordista é substituída por uma outra, onde se faz necessário uma nova “expansão global da forma mercadoria” (JAMESON, 1996: 5).

Citamos Jameson, pois ele é outro autor que aborda a questão do pós-modernismo e pensa dentro do mesmo contexto que estamos trabalhando com Harvey. Jameson aponta que a mudança que está ocorrendo dentro do sistema capitalista tem por base a transformação cultural, que toma a própria expressão cultural como mercadoria. Esse processo teria começado ainda na década de 50, “depois que a falta de bens de consumo e de peças de reposição da época da guerra tinha sido solucionada e novos produtos e novas tecnologias (...) puderam ser introduzidas” (JAMESON, 1996: 12).

Aqui se verificam dois pressupostos fundamentais para essa época. O primeiro se refere a toda uma transformação da produção e das relações de trabalho (aumento do trabalho informal, a ocupação das mulheres em cargos que antes eram dominados pelos homens, expansão das multinacionais, etc.), isto é, a formação de um novo mercado produtor e consumidor. Disso parte o segundo pressuposto, ou seja, essas transformações materiais impuseram profundas transformações de mentalidade da sociedade.

Segundo Jameson, já estava ocorrendo uma mudança na mentalidade e nos valores culturais das sociedades promovidas pelo pós-modernismo que, mais do que um conceito, é uma “dominante cultural” (JAMESON, 1996: 29).

No bojo do “capitalismo tardio”, a “acumulação flexível” representa uma continuidade do sistema acumulativo de capitais desenvolvido no início do século. Dessa continuidade faz parte, “além da empresas transnacionais (...), a nova divisão do trabalho, a nova dinâmica vertiginosa de transações bancárias, e das bolsas de valores (...), novas formas de inter-relacionamento das mídias (...), computadores e automação...” (JAMESON, 1996: 22, grifos meus).

Essas transformações, segundo o autor, são uma construção histórica, fato também assinalado por Harvey. Mas são, porém, “de uma ordem cultural totalmente nova” (JAMESON, 1996: 16), de uma “dominante cultural da lógica do capitalismo tardio” (Idem: 72), que coloca “a produção estética (...) integrada a produção das mercadorias em geral”, onde “a urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que cada vez mais pareçam novidades (...) com um ritmo de turn over cada vez maior, atribui uma posição e função estrutural cada vez mais essenciais à inovação estética e ao experimentalismo” (Jameson, 1996: 30, grifos meus).

Assim, a construção de novos signos, novos valores e símbolos começa a se tornar mais marcante. Um desses signos é a indústria de jogos eletrônicos, que começa, já na década de 60, a se desenvolver.

Esse novo signo se apóia numa série de outros signos, sendo o mais relevante para a discussão atual são os relacionados à violência. Além de caracterizar, mesmo que de forma fantasiosa a sociedade em que vivemos, isto é, uma sociedade cuja violência é fato comum, os jogos eletrônicos banalizam certos valores relacionados ao tema, sobretudo a morte do outro como algo a ser conseguido de qualquer forma.

O que é mais cruel nessa nova lógica de acumulação, e que não se pode perder de vista, é que os signos relacionados à violência se transformaram em “um produto comercial. ‘É barato e dá lucro’” (ZAPPA, 1998: 6).

Mas o que não se pode deixar de lado é que exploração desse signo não é característica exclusiva dos jogos eletrônicos, ao contrário, seus produtores apenas se apóiam no que é sucesso em outros meios de informação, surgidos a partir da década de 50 e 60, principalmente, que exploram os vários signos valorizados nesse sistema. A televisão é um desses meios, mas não vamos nos deter nisso agora.

O que se quer deixar claro nesse artigo, é que os jogos eletrônicos são produtos industriais, mas não simples mercadorias. Na verdade, podemos dizer que os jogos são mercadorias que traduzem os novos símbolos culturais idealizados por essa nova fase do capitalismo que se solidifica, trazendo aos consumidores novos meios de se relacionar entre si e com a produção cultural de seu tempo, mesmo que essa chegue ao público de forma nivelada dentro de certos padrões que satisfaçam um público geral.

E mais, esses novos produtos culturais já chegam prontos ao consumidor. A capacidade de criação não existe. A forma de se relacionar com esses produtos, a capacidade de fruição proporcionada por eles, não nasce dos próprios consumidores, “não nasce de baixo”, mas sim “através das comunicações de massa”, onde tais produtos lhes são propostos “sob formas de mensagens formuladas segundo o código da classe hegemônica” (Eco, 1993: 24).

Essa classe hegemônica é tão somente a mesma classe que outrora se fundamentou pela exploração da mais valia, característica do sistema capitalista, o qual, como acontece atualmente com os jogos eletrônicos, trabalhava na criação de novas necessidades, novos valores de uso, para manterem sua velha forma de acumulação.

Nos parece assim que a construção desses novos parâmetros societais e culturais, em muitos casos, tem por objetivo a manutenção do status quo dessa “classe hegemônica”. Essa manutenção se dá por meio de códigos de valores que se proliferam através de seus produtos culturais mais banais, os quais podem revelar como se fundamenta seu modelo organizacional, logo suas possíveis contradições.

Nessa forma de organização o ser humano não é valorizado para além de suas capacidades consumidoras. Assim, é comum que o ser humano em geral seja, atualmente, cada vez mais frio, insensível ao próximo, individualista, entre outras características marcantes.

Assim, quando acontece um massacre cuja explicação ninguém consegue encontrar, logo elege-se um bode expiatório para dar conta do fato. Lembremos o caso de Littleton, ocorrido em abril de 1999, no Colorado, Estados Unidos, que marcou de vez a relação entre violência e jogos eletrônicos no contexto mundial. No caso em questão, os protagonistas Dylan Klebold, de 17 anos, e Eric Harris, de 18 “costumavam jogar obsessivamente sangrentos videogames como Doom e Quake (Destruição e Terremoto), usavam a longa capa preta preferida pelos fãs de rock pesado e ouviam a música horripilante de Marilyn Manson e das bandas alemãs de rock, Rammstein e KMFDM (...), também idolatravam Adolf Hitler” (POWERS, 1999: 1). Esses jovens entraram na escola em que estudavam, o Columbine High School, colocando nela cerca de trinta bombas – que não foram detonadas; depois chegaram ao refeitório e atiraram aleatoriamente, com suas pistolas e fuzis, matando doze alunos e um professor, suicidando-se em seguida.

Além de serem consumidores de jogos eletrônicos, esses rapazes tinham outras características em comum: problemas psiquiátricos; eram também indivíduos que não se relacionavam com as outras pessoas, tiveram fácil acesso a armamentos - nos EUA é muito fácil de se comprar legalmente armas; tiveram ainda ao seu lado a falta de segurança nos locais que entraram, eram de família rica, premeditaram o crime, além de outras características especificas.

Enfim, existe nesse e em outros casos ocorridos que não é o caso de citar aqui, uma série de características de personalidade e formação que dá pistas para entender o que pode ter realmente motivado esses jovens a fazer o que fizeram.

Acredito que culpar os jogos eletrônicos pela violência é apenas uma forma de “esconder” realmente as causas reais desses fatos, que tem suas raízes nas contradições de um sistema desleal e desumano que tenta, com suas novas as formas faces e signos, prolongar algo que já é insustentável, mas que lhe dá sustentação.

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Bibliografia

ECO, U. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1993.

GRUNSPUN, H. Games violentos não fazem mal. Superinteressante on-line, mar. 2001. Disponível em <www2.uol.com.br/super/revista/superpol>. Acesso em: 20 junho 2001.

HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre a modernidade, São Paulo: Ed. Loyola, 1992.

HOBSBAWM, E. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991) São Paulo: Cia das letras, 1995.

JAMESON, F. Pós-Modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ed. Ática, 1996.

OS MAIS vendidos dos EUA, 18 jan. 2001. Outerspace. Disponível em <www.outerspace.com.br>. Acesso em: 13 mar. 2001.

POWERS, A. Tragédia do Colorado abre batalha contra a cultura . O Estado de São Paulo, São Paulo, 29 abr 1999. Disponível em: < www.estadao.com.br >. Acesso em: 11 agosto 2000.

VENDAS de videogames caem em 2000, 17 jan. 2001. Outerspace. Disponível em <www.outerspace.com.br>. Acesso em: 13 mar. 2001.

VENDAS de videogames aumentam em 2002, 28 jan. 2003. Outerspace. Disponível em <www.outerspace.com.br>. Acesso em: 04 fev. 2003.

ZAPPA, R. A violência na sala de estar. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31 maio de 1998, Caderno B, p. 6-7.


* Originalmente publicada na revista espaço acadêmico - http://www.espacoacademico.com.br

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