terça-feira, 7 de outubro de 2008

Camelô de tecnologia ou um novo “negócio” de sucesso na rua

Por: Bruno José Rodrigues Durães

Introdução

O espaço tradicional das atividades informais de rua no Brasil foi e, de certo modo, ainda é historicamente marcado pela existência de um conjunto de práticas de trabalho e de tipos de sobrevivência próprios. Essas práticas de rua, ao longo de sua formação, foram constituindo e consolidando uma lógica própria de trabalho (no processo e nas relações de trabalho) que se manteve e, em certos casos, ainda se mantém avessa às práticas totalizantes ditas formais de trabalho da sociedade capitalista, ainda que estejam conectadas com a lógica mais geral do capitalismo, vivendo em conexão com o fluxo econômico geral do capital, principalmente via circulação de mercadorias.

A rua enquanto lócus secular de reprodução social foi relegada a uma gama de excluídos da sociedade regular, os quais encontraram apenas nessas atividades sua possibilidade de sobrevivência. Pode-se dizer que essas atividades de rua são anteriores à própria institucionalização do capitalismo, ainda mais se formos tratar da sociedade brasileira que teve em sua história a intensa participação de trabalhadores/as de rua na movimentação do comércio local, no período colonial. Havia uma parcela considerável de negros, mestiços e alguns brancos pobres exercendo diversos tipos de funções especializadas ou não-especializadas nas ruas das grandes cidades do país, como Salvador, Rio de Janeiro ou Recife – funções como a de carregador, ganhador/a, vendedor/a, quituteira, funilaria, carpintaria, etc. Isto já representava uma forma de trabalho de certo modo avançada para a época, ao inaugurar um tipo de trabalho livre, em plena sociedade escravista[1]. Contudo, apesar disso, não deixou de se constituir como formas de trabalho diretamente voltadas para sobrevivência e intensamente inferiorizadas.

O trabalho informal de rua no Brasil é, portanto, historicamente marcado pelas condições precárias e pelos baixos níveis de rendas auferidos, quase sempre representou trabalhos diretamente voltados para a sobrevivência imediata dos envolvidos, inclusive com o uso de técnicas e equipamentos rudimentares, bem como, composto por baixos custos e de fácil acesso, o que facilitava a entrada de novos/as trabalhadores/as. Contudo, nos últimos anos vem ocorrendo uma mudança neste cenário. Agora se percebem determinadas atividades, digamos, determinados “negócios” de rua, em que a lógica do ganho (o lucro) se torna muito mais evidente e de fato consegue-se um nível de renda maior nunca antes imaginado em tal espaço. Além disso, tais atividades passam a sofrer uma influência direta das práticas de trabalho do mundo regular/formal.

Pode-se afirmar que uma gama crescente de trabalhadores/as de rua está se inserindo de modo diferenciado, está encontrando ou já encontrou um porto mais seguro para sua reprodução social e mais que isso consegue agora melhorar suas condições de vida.

Hoje, existe um tipo de camelô, o qual denominamos provisoriamente de Camelô de Tecnologia[2], que consegue um nível de renda maior, compondo um processo de reconfiguração na informalidade de rua[3]. Nossa intenção aqui é justamente trazer à tona este tipo de camelô, bem como, identificar parte de suas complexidades internas.

Camelôs de Tecnologia ou um novo “negócio” de sucesso da rua

O camelô de tecnologia pode também ser denominado de elite das ruas, elite dos camelôs, são quase empresas de rua. Ocorrem mais predominantemente no eixo Sul e Sudeste. Compõem o segmento de rua que consegue maiores lucros, ligados à venda de produtos eletrônicos e de alta tecnologia, incorporando toda uma lógica e estilo[4] capitalista/formal de venda e de relações de trabalho, porém mantém-se no lugar por excelência das atividades tradicionais, a rua, inclusive convivendo lado a lado, vendedor tradicional e moderno[5], como na região do terminal central de ônibus de Campinas/Sp[6]. Isto é, formas historicamente precárias de trabalho, que eram o lócus do velho, hoje são também a expressão máxima do novo. Parece haver uma simbiose do velho com o novo, com maior participação do novo, consolidando uma configuração contraditória sem ser anacrônica[7]. Na verdade, essa questão carece de pesquisas empíricas e análises teóricas (mais profundas) para entender como se deu (e se dá) esse processo de reconfiguração do camelô de tecnologia. Saber, por exemplo, se esse processo realmente resulta apenas da entrada dos “novos-informais” (CACCIAMALI, 2000; FILGUEIRAS, DRUCK e AMARAL, 2000; LIMA, 2002; e SILVA, 2002), ou seja, de trabalhadores/as que perderam empregos formais e adentraram na informalidade (trabalhadores/as demitidos em processos de reestruturações), os quais trazem consigo um estilo capitalista de trabalho (um novo modus operandi) ou se decorre do tipo de produto comercializado, as mercadorias tecnológicas, que trazem consigo um estilo de venda próprio (uma carga simbólica), que terminou influenciando na forma de ser das atividades de rua (no nível de suas representações concretas de trabalho e de vida). Ou ainda, se foi um processo resultante de outras situações.

Esses trabalhadores (os camelôs de tecnologia) vendem produtos sofisticados como: computadores, máquinas fotográficas digitais, MP3/MP4/MP5, aparelhos de DVD, notebook, entre outros equipamentos eletrônicos[8]. Mesmo lotados na rua, valem-se de letreiros e propagandas (lay aut) com o nome dos boxes ou das bancas, como se fossem verdadeiras lojas formais – como a Dataplay, cujo slogan de sua estampa comercial é “Tudo com qualidade e garantia”, ou a Story´s Eletro & Informática, especializada em “Acessórios para informática, sons para carro e eletrônicos em geral”, ambas funcionando em boxes/bancas no terminal central de ônibus de Campinas –, utilizam-se de sacolas e cartões personalizados, atendimento especial e qualificado, subemprego. Possuem seguranças privados nas ruas. Enfim, seguem toda uma lógica e estilo próprio do sistema de trabalho formal de uma empresa capitalista.

Considerações finais

Diversos fatores históricos de trajetória social e de vida precária implicam em estar situado em determinada condição de vida, de trabalho, na rua, situado de determinada forma e não de outra. É como se o espaço de existência e de vida desses agentes sociais ficassem em alguns casos subsumidos[9] diante da força estrutural da sociedade que os constitui, sobrando pouco espaço para suas intervenções subjetivas e individuais no nível de sua inserção e reprodução social. Os espaços de sobrevivência já estão delineados, o que se faz é inventar ou reinventar formas de execução da atividade, mas as formas de trabalho ainda permanecem na rua, sem formalidade de trabalho, sem garantias e sem direitos. É como se seu campo de atuação já estivesse delimitado. Hoje, mais do que nunca, a trajetória seguida pelos indivíduos tende a implicar diretamente nas suas formas de inserção social, nos seus tipos de trabalho. O espaço de manobra possível é limitado. Isso para aqueles que conseguirem se encaixar ou serem encaixados nessas formas de trabalho, pois, pelo que se vê nas diversas prefeituras do país é uma intensificação da repressão e do controle sobre a entrada de novos trabalhadores de rua. O que antes (década de 70) funcionava como válvula de escape do desemprego, como setor de ajustes, hoje, constitui nas mais modernas portas de reafirmação do desemprego e do trabalho precário.

Essa é certamente uma grande questão da sociedade brasileira da atualidade, em pleno século XXI, a existência de uma informalidade de rua antiga, existente desde os tempos mais remotos de formação das cidades brasileiras, mas que hoje não funciona mais como um espaço de trabalho aberto, apto para equilibrar o desemprego no país. Na verdade, a informalidade de rua começa a exibir nítidas barreiras de acesso e, em certos casos, alguns níveis de qualificação para ingresso, como é o caso dos camelôs de tecnologia, que aparentam serem compostos por uma população mais instruída (maiores níveis educacionais e capacitação profissional mais elevada), além de todo um cabedal de conhecimentos sobre tecnologia que se tem que ter para comercializar estes tipos de produtos.

Esta é a nova face da informalidade de rua, que representa uma estreita conexão e imbricação com sofisticados elementos modernos, do mundo formal. Ocorre uma reordenação na antiga informalidade de rua, doravante nunca vista.

Os camelôs de tecnologia parecem estar inseridos diretamente dentro do processo de realização do capital (via circulação de mercadorias, funcionando como trabalhadores gratuitos[10], os quais contribuem para realização do capital, sem cobrar nada, nem obterem ganhos efetivos com essa função) e também está diretamente conectado com o mundo globalizado, ligados ao campo da tecnologia e da informática, via comercialização de produtos de diversas partes do mundo, como China, Coréia, Japão, etc. Esse tipo de comércio globalizado compõe o que Ribeiro denomina “globalização popular”, a qual significa: “(...) mercados populares e fluxos de comércios que são compostos, em grande medida, por gente do povo e não por representantes das elites (...), em geral, suas atividades são consideradas como ilegais, como ‘contrabando’”. (RIBEIRO, 2007: 07) [grifos nossos; tradução livre]. Dessa maneira, tal atividade se apresenta como um fenômeno por si só contraditório, o qual é ao mesmo tempo moderno por incorporar produtos e qualificações modernizantes e modernizadas, como também é tradicional por manter-se no lugar por excelência da informalidade, na rua, e por correlacionar práticas modernas com lógicas tradicionais peculiares à própria atividade de rua, como as formas típicas e singulares de atrair os clientes, via gritos ou exposição de mercadorias.

Esses camelôs, inclusive, mantêm uma de suas características principais, a saber, a existência na rua, sem pagamento de impostos pela circulação de mercadorias e sem carteira assinada. Portanto, por si só, essa acepção compõe um curioso paradoxo de aparência formal (modernizada) e essência informal (marcadas por práticas tradicionais). Mas, dentro do cenário da informalidade de rua, do universo dos camelôs, este grupo certamente representa um negócio de sucesso, isto é, é um tipo de atividade que muito provavelmente representa o topo da pirâmide do comércio de rua e deve funcionar como exemplo de um caminho bem sucedido para as práticas de rua, permitindo, assim, que muitos trabalhadores/as parem de migrar para outras atividades informais e até desistam de inserções formais, justamente por causa do bem estar advindo com a venda dos equipamentos tecnológicos. Mas, certamente, a ampliação deste tipo de camelô de tecnologia tem limite, seja dado pela própria atividade, seja por fatores externos (comércio formal, poder público, etc.). Acreditamos também que esse tipo de trabalhador funciona, por um lado, como um veículo de divulgação e inclusão de tecnologias e produtos sofisticados para uma parcela da população que historicamente estaria excluída dessas inovações, e, por outro lado, implica em uma expansão de ganhos para grandes empresas de desenvolvimento e produção desses equipamentos. Portanto, a rua termina compondo mais um cenário contraditório e complexo, em que ao mesmo tempo em que atende a uma demanda de melhoria de renda (e vida) dos/as próprios/as trabalhadores/as envolvidos/as, serve também diretamente como mais um espaço de expansão de ganhos e lucros para o capital tecnológico (grandes empresas de tecnologia), mesmo que seja um espaço ilegal, informal e subterrâneo.


Referências

CACCIAMALI, Maria Cristina. Globalização e processo de informalidade. In: Economia e Sociedade, Campinas: Unicamp. I.E., n. 14, jun. 2000. p. 152 – 174.

DURÃES, Bruno J. R. Trabalho de Rua em Salvador e sua contribuição para acumulação capitalista: o trabalhador gratuito. Temáticas, ano 13, n.º 25/26, IFCH/UNICAMP, p. 217 a 238, 2005.

______. Trabalhadores de rua de Salvador: Precários nos cantos do século XIX para os encantos e desencantos do século XXI. São Paulo: Dissertação de Mestrado em Sociologia, Unicamp, 2006.

FILGUEIRAS, Luiz A. M.; et al. O conceito de informalidade: problema ou solução? Salvador: Faculdade de Ciências Econômicas, 2000, (mimeo).

RIBEIRO, Gustavo Lins. El sistema mundial no-hegemônico y la globalização popular. Série Antropologia, DF, UNB, vol. 410, 2007.

LIMA, Jacob Carlos; SOARES, Maria José. Trabalho Flexível e Novo Informal. Salvador: Caderno do CRH, n.37, 2002, p.163-180.

SILVA, Luís Antônio Machado. Da informalidade à empregabilidade. Reorganizando a dominação no mundo do trabalho. Salvador: Caderno do CRH, n.37, 2002, p.81-109.

[1] Referente aos/as trabalhadores/as de rua de Salvador do final do século XIX, ver (DURÃES, 2006).

[2] Este tipo de camelô representa o objeto de estudo de minha tese de doutorado ainda em andamento no curso de Ciências Sociais, junto à Unicamp-Sp, intitulada “Camelô de Tecnologia” ou “Camelô Global” em Campinas/SP: uma nova configuração da informalidade?.

[3]Os comentários que fazemos aqui sobre os camelôs de tecnologia são frutos de observações diretas e conversas que fizemos junto a estes trabalhadores/as desde 2007 na cidade de Campinas-Sp.

[4] Essa denominação refere-se a uma mescla de influências típicas do capitalismo – incorporação de um certo estilo de trabalho que imita traços dos trabalhos formais, como no tocante a relações de assalariamento; possível separação capital-trabalho; uso de fardas, sacolas e cartões de visitas personalizados; adoção de pagamento via cartões de crédito e débito; uso de tecnologias de comunicação na rua, como telefone, fax e internet, entre outros artifícios, como ligar para clientela para ofertar lançamentos tecnológicos. Ainda assim, mantêm características singulares das atividades de rua, ligadas a inovação e criatividade.

[5] Incorporam toda uma lógica formal de trabalho de uma empresa, porém, é realizado na rua, sem registro de micro-empresa ou coisa do gênero, apenas com uma licença na prefeitura.

[6] O Terminal é divido em setores específicos, cada qual com tipos peculiares de vendedores/as. Desse modo, o pessoal de tecnologia fica em uma área própria, ainda assim, fazem fronteira com outros tipos de trabalhadores, havendo em alguns casos uma certa mistura de tipos de atividades. Outro exemplo desse tipo de atividade é o comércio popular da Uruguaiana no centro do Rio de Janeiro. Além dessas duas cidades, existem diversas outras que possuem tal tipo de camelô.

[7] Pois não estão fora de época. Na verdade, do ponto de vista do processo de trabalho é mais do que evidente que eles estão agora mais do que nunca de acordo com as formas de trabalho do mundo formal moderno/capitalista, vivenciando também possivelmente processos e mecanismos de incertezas e intensidade de trabalho.

[8] Não incluímos entre estes camelôs os vendedores de CD/DVD, pelo menos por duas razões: primeira, por representarem um fenômeno por demais generalizado no país, que agrega tanto trabalhadores regulamentados quanto desregulamentados (com pontos fixos e ambulantes), uns mais precários do que outros; e, a segunda, dá-se pelo fato desses trabalhadores de CD/DVD venderem produtos diferenciados dos camelôs de tecnologia, pois ofertam produtos com baixo valor agregado, produtos mais baratos, com uma carga negativa maior, pois lidam com falsidade ideológica, contravenção, além disso, certamente possuem níveis de renda diferenciados.

[9] Mais do que subordinados, estão constituídos por uma determinada lógica estruturadora das práticas sociais.

[10] Sobre os trabalhadores gratuitos ver: (DURÃES, 2005).

Fonte Original: http://www.espacoacademico.com.br/089/89duraes.htm

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